GRAFIA [Edição 63]
A noite se espalha pelas ruas do bairro. O mesmo faz o lixo nas suas calçadas. Também o perfume de bacon do Bar do Garcia e os perfumes das moças que trabalham nos pequenos apartamentos do Ed. Éden, que tem três andares e fica bem ali na esquina.
Enfim, uma noite normal de trabalho, inclusive para o bravo detetive que se dedica à Etimologia e atende às palavras ansiosas por descobrirem suas origens, de onde vêm e para onde vão, essas bobagens que as palavras valorizam muito.
Hoje nosso herói, em sua gabardine de sempre, atende a palavra Grafia. Ela está sentada à frente dele, impressionada com a sua frieza e coragem. Tudo o que ele diz de si mesmo o iguala aos maiores detetives de ficção e ainda sobra.
Infelizmente suas ações foram tão perigosas que não sobrou ninguém vivo para testemunhar, de modo que vamos ter que acreditar nele mesmo.
– Hum, Grafia, hein? – diz ele, em sua voz fria e metálica, que ele passa dias ensaiando ao espelho – você deu muito o que falar ao mundo. Ou o que escrever.
– Veja, você vem do Grego graphein, “escrever”, originalmente “arranhar, sulcar”. As primeiras letras foram raspadas, sulcadas na pedra ou na argila, e a humanidade nunca esqueceu esse fato, por mais que tenha sofisticado mais tarde os modos de registrar seus pensamentos.
Seus parentes se espalham pelo mundo e são usados a toda hora. Por exemplo, veja gráfico, de graphikós, “referente à escrita”, de graphé, “escrita”.
Na Grécia se usava o grapheion, um instrumento para escrever, que deixou como descendente em nosso idioma o gráfion, hoje em desuso porque foi substituído pelo Latim stylus, que inclusive acabou sendo usado para designar a maneira de uma pessoa escrever.
Entre a tietagem de nosso mundo se usa muito pedir autógrafos, palavra que vem de graphé mais auto-, “próprio, de si mesmo” – ou seja, uma escrita pela própria pessoa.
Modernamente a tendência das pessoas famosas parece ser rabiscar um “X”, dada a ignorância geral da escrita que toma conta dos seres humanos.
Mas vamos deixar de pessimismo e lembrar que um primo seu é o parágrafo. Hoje este se representa através de uma mudança de linha, indicando que o assunto seguinte varia de foco.
Exceto nos escritos de filósofos, que acham que quanto mais tijoludas forem suas páginas, mais profundas serão.
Mas originalmente o parágrafo era um sinal usado para marcar as diferentes partes de um coro da tragédia grega.
Em Grego, a palavra gramma, derivada de graphé, queria dizer “letra do alfabeto”. Depois, sendo as letras pequenas, passou a designar um “peso pequeno”.
Daí que hoje uma unidade de massa seja o grama. É por isso que devemos pedir duzentos gramas de alguma coisa, não “duzentas”. Esta palavra é masculina; não confundir com a grama de nossos jardins, que veio do Latim gramen, “relva, grama” e é do gênero feminino.
Mas isso que eu falei foi apenas um circunlóquio, quero dizer é que dessa gramma, “letra”, saiu a expressão grammatiké tékhne, “arte ou ciência da escrita”, ou seja, a nossa Gramática.
Esta contém o conjunto de regras para que possamos garantir que nosso idioma seja reconhecido e compreendido através da distância e do tempo.
Infelizmente, muitas pessoas acham que não é necessário saber nada disso, que elas se fazem compreender de qualquer jeito.
Muitos gostam de fazer palavras cruzadas e anagramas. Esta palavra vem de anagrammatizein, “trocar letras”, formada por ana-, “para trás, contra”, mais gramma.
Existe também o diagrama, de diagramma, “figura geométrica, figura representada por linhas”, de diagraphein, “delinear, marcar com linhas”, de dia-, “através”, mais gramma.
E não nos esqueçamos do programa, de programma, “informação pública escrita”, de prographein, “escrever para uso público”, de pro-, à frente”, mais graphein.
Lá pelo século XIX esta palavra passou a ostentar o significado de “plano ou esquema definido”.
Há uma palavra sua parenta de muito pouco uso fora dos círculos eruditos: é o grimório, do Francês grimoire, que designava “gramática latina, incompreensível para os não-estudantes”, e que hoje quer dizer “livro de fórmulas mágicas usado por bruxas e gente de seu tipo”.
Escrever certo é importante, não é? Todos devemos primar por isso, todos devemos seguir a ortografia, que vem de ortós, “reto, correto, direito” quando vamos fazer um texto ou mesmo um bilhetinho.
Muitas pessoas dizem: “Foi ele que escreveu isso, sim, reconheci a caligrafia dele”. Isso nem sempre é verdade, pois essa palavra quer dizer “escrita bonita”, de kaligraphia, de kallos, “belo, bonito”.
Nesse caso, deve-se dizer apenas “Reconheci a letra dele”, ou a sua “grafia”.
E quando a gente vai ao médico, muitas vezes ele nos manda fazer um eletrocardiograma, que é o registro em sinais da atividade elétrica do coração, como se deduz ao ler.
E por hoje ficamos por aqui. Se ficou com fome depois de aprender, recomendo o Bar do Garcia, ali na frente. Tenho um convênio com ele; se você levar este papel com meu autógrafo, pode ser que ele lhe dê dez por cento de desconto, embora eu não possa garantir.