Palavra caligrafia

GRAFIA

A noite se espalha pelas ruas do bairro. O mesmo faz o lixo nas suas calçadas. Também o perfume de bacon do Bar do Garcia e os perfumes das moças que trabalham nos pequenos apartamentos do Ed. Éden, que tem três andares e fica bem ali na esquina.

Enfim, uma noite normal de trabalho, inclusive para o bravo detetive que se dedica à Etimologia e atende às palavras ansiosas por descobrirem suas origens, de onde vêm e para onde vão, essas bobagens que as palavras valorizam muito.

Hoje nosso herói, em sua gabardine de sempre, atende a palavra Grafia. Ela está sentada à frente dele, impressionada com a sua frieza e coragem. Tudo o que ele diz de si mesmo o iguala aos maiores detetives de ficção e ainda sobra.

Infelizmente suas ações foram tão perigosas que não sobrou ninguém vivo para testemunhar, de modo que vamos ter que acreditar nele mesmo.

– Hum, Grafia, hein? – diz ele, em sua voz fria e metálica, que ele passa dias ensaiando ao espelho – você deu muito o que falar ao mundo. Ou o que escrever.

– Veja, você vem do Grego graphein, “escrever”, originalmente “arranhar, sulcar”.  As primeiras letras foram raspadas, sulcadas na pedra ou na argila, e a humanidade nunca esqueceu esse fato, por mais que tenha sofisticado mais tarde os modos de registrar seus pensamentos.

Seus parentes se espalham pelo mundo e são usados a toda hora. Por exemplo, veja gráfico, de graphikós, “referente à escrita”, de graphé, “escrita”.

Na Grécia se usava o grapheion, um instrumento para escrever, que deixou como descendente em nosso idioma o gráfion, hoje em desuso porque foi substituído pelo Latim stylus, que inclusive acabou sendo usado para designar a maneira de uma pessoa escrever.

Entre a tietagem de nosso mundo se usa muito pedir autógrafos, palavra que vem de graphé mais auto-, “próprio, de si mesmo” – ou seja, uma escrita pela própria pessoa.

Modernamente a tendência das pessoas famosas parece ser rabiscar um “X”, dada a ignorância geral da escrita que toma conta dos seres humanos.

Mas vamos deixar de pessimismo e lembrar que um primo seu é o parágrafo.  Hoje este se representa através de uma mudança de linha, indicando que o assunto seguinte varia de foco.

Exceto nos escritos de filósofos, que acham que quanto mais tijoludas forem suas páginas, mais profundas serão.

Mas originalmente o parágrafo era um sinal usado para marcar as diferentes partes de um coro da tragédia grega.

Em Grego, a palavra gramma, derivada de graphé, queria dizer “letra do alfabeto”. Depois, sendo as letras pequenas, passou a designar um “peso pequeno”.

Daí que hoje uma unidade de massa seja o grama. É por isso que devemos pedir duzentos gramas de alguma coisa, não “duzentas”. Esta palavra é masculina; não confundir com a grama de nossos jardins, que veio do Latim gramen, “relva, grama” e é do gênero feminino.

Mas isso que eu falei foi apenas um circunlóquio, quero dizer é que dessa gramma, “letra”, saiu a expressão grammatiké tékhne, “arte ou ciência da escrita”, ou seja, a nossa Gramática.

Esta contém o conjunto de regras para que possamos garantir que nosso idioma seja reconhecido e compreendido através da distância e do tempo.

Infelizmente, muitas pessoas acham que não é necessário saber nada disso, que elas se fazem compreender de qualquer jeito.

Muitos gostam de fazer palavras cruzadas e anagramas. Esta palavra vem de anagrammatizein, “trocar letras”, formada por ana-, “para trás, contra”, mais gramma.

Existe também o diagrama, de diagramma, “figura geométrica, figura representada por linhas”, de diagraphein, “delinear, marcar com linhas”, de dia-, “através”, mais gramma.

E não nos esqueçamos do programa, de programma, “informação pública escrita”, de prographein, “escrever para uso público”, de pro-, à frente”, mais graphein.

Lá pelo século XIX esta palavra passou a ostentar o significado de “plano ou esquema definido”.

Há uma palavra sua parenta de muito pouco uso fora dos círculos eruditos: é o grimório, do Francês grimoire, que designava “gramática latina, incompreensível para os não-estudantes”, e que hoje quer dizer “livro de fórmulas mágicas usado por bruxas e gente de seu tipo”.

Escrever certo é importante, não é? Todos devemos primar por isso, todos devemos seguir a ortografia, que vem de ortós, “reto, correto, direito” quando vamos fazer um texto ou mesmo um bilhetinho.

Muitas pessoas dizem: “Foi ele que escreveu isso, sim, reconheci a caligrafia dele”. Isso nem sempre é verdade, pois essa palavra quer dizer “escrita bonita”, de kaligraphia, de kallos, “belo, bonito”.

Nesse caso, deve-se dizer apenas “Reconheci a letra dele”, ou a sua “grafia”.

E quando a gente vai ao médico, muitas vezes ele nos manda fazer um eletrocardiograma, que é o registro em sinais da atividade elétrica do coração, como se deduz ao ler.

E por hoje ficamos por aqui. Se ficou com fome depois de aprender, recomendo o Bar do Garcia, ali na frente. Tenho um convênio  com ele; se você levar este papel com meu autógrafo, pode ser que ele lhe dê dez por cento de desconto, embora eu não possa garantir.

Resposta:

Mais Material Escolar

Quietos, todos! Estão pensando que a Tia Odete não percebe nada só porque usa óculos? Pois eu enxergo e ouço muito bem, bandidinhos.

Por exemplo, vejo que o Joãozinho ali não pára de olhar para uma misteriosa revistinha que tem escondida na mochila; que o Zorzinho está escrevendo sem parar coisas que nada têm que ver com nossa aulinha; que o Soneca está dormindo o sono dos anjos; que o Artur está com muita cara de sonso e deve estar aprontando alguma; que o Sidneizinho faz sinais para a Mariazinha e que esta ameaça bater nele.

Tia Odete é espertinha! Muito mais do que vocês pensam. É uma pena que vocês não… Ei, está aí uma palavra interessante. Vocês se lembram de uma aulinha em que eu falei sobre material escolar? Ali eu dei as origens de palavras como caneta, papel, lápis e outras.

Pois agora, para acalmar um pouco a turma, vamos falar sobre outras palavrinhas relacionadas com essas.

Vamos ver a pena, por exemplo. Agora praticamente só se usa a palavra caneta – vem de cana, lembram-se? – para dizer “instrumento de escrita à tinta”. Mas pena ainda tem pelo menos o sentido metafórico: “A pena vale mais que a espada”, etc. Há quem goste de pensar assim, mesmo nestas épocas em que a espada anda tão à solta, cortando cabeças pelo mundo.

Sim, Ledinha, os soldados usam muito pouco a espada para lutar agora. Eu sei que o que eles usam mesmo são armas de fogo. Eu citei “espada” em sentido metafórico.

Pois se usava mesmo uma pena – de pato, de ganso, etc. – para escrever antigamente. Fazia-se uma ponta nela e então ela era mergulhada num vidro de tinta. Esta subia para dentro do interior oco da haste, ou cálamo, e dava para escrever umas poucas palavras antes que ela terminasse. Imaginem o trabalhão que dava, escrever molhando constantemente a pena no tinteiro!

Não, Ledinha, não creio que tenham usado pena de avestruz para melhorar a situação. As que usavam eram menorzinhas mesmo. Mas o pessoal se acostumava. Se eu me acostumo com certas atividades, por que eles não se ajeitariam com isso?

Mas, como eu ia dizendo, pena veio do Latim pinna, “asa, pena, extremidade, flecha”.

Muito bem, Humbertinho, há uma outra palavra igual com outro sentido. Existe na nossa língua a palavra pena no sentido de “castigo”. E também no de “lástima, dó”.

Esta vem também do Latim, mas da palavra poena, que expressava “castigo, compensação por uma má ação, resgate”.

Como ela se referia a uma ação que sempre era de lamentar, mesmo que merecida, o sentimento gerado por ela acabou designando também a “lástima” que citei.

É uma pena que eu não possa pegar a pena e condenar certas pessoas à pena de cadeia por algum tempo. Ouviram??

Chii, uma meia dúzia pulou aí, por que será?

Os estudantes e escritores antigamente usavam penas em caixas e gastavam uma grande quantidade delas. Se vocês olharem gravuras antigas representando estudantes e professores da Idade Média, verão que eles andavam com essa caixa e um tinteiro pendurados do cinto.

Hein? Não, Mariazinha, não sei se os patos e gansos viviam pelados e tremendo naquelas épocas. Talvez, se sentissem frio, as donas lhes tricotassem umas roupinhas de lã. Sei lá. Acho que faltei a essa aula quando eu estava estudando.

Uma coisa indispensável para usar as penas era um apontador, na época uma pequena faca bem afiada. Esta palavra vem do Latim puncta, “ponta, voto, ponto no jogo, espetada”. Um objeto ad punctam servia “para apontar”.

Quando eu era pequena a gente surripiava uma gilete usada do pai para apontar os lápis. O apontador como o que vocês têm agora servia muito bem, mas quando a gente queria um lápis apontado de um jeito especial, só com a gilete. Hoje em dia, a maioria dos aparelhos para fazer a barba não apresentam aquele tipo de lâmina e não permitem fazer aquelas pontas divinas.

O nome desse objeto vem de um americano que nasceu em 1855 e morreu em 1932, o senhor King Camp Gillette.

Não, senhores, não foi nenhuma coincidência ele ter nascido com este nome, não. O sobrenome dele é que passou a designar o objeto, que a rigor devia ser designado por “lâmina de barbear descartável”.

Isso se chama eponímia. Esta palavra se formou do Grego epi-, “sobre”, mais onyma, “nome”. Um epônimo é uma palavra que se usa para designar algo a partir do nome do criador ou de uma marca. “Sanduíche”, “volt”, “watt” são exemplos.

Bem; acontece que o senhor Gillette conhecia o inventor das tampinhas de garrafa. Um dia, em conversa, este comentou que o futuro estava em fazer objetos descartáveis e baratos.

Uma manhã de 1895, pensando no assunto enquanto fazia a barba com aquelas navalhas antigas, Gillette percebeu que o que importa numa navalha é apenas a sua borda afiada. Todo o resto é apenas para manejar o instrumento. A partir daí o seu pensamento evoluiu, e oito anos depois ele estava produzindo suas lâminas de barbear descartáveis, encaixadas em aparelhos adequados para portá-las.

Ele levou um susto no primeiro ano, quando verificou que tinha vendido apenas 51 aparelhos de barbear e 168 lâminas.

Felizmente a situação mudou logo e, no fim do ano seguinte, ele já tinha vendido mais do que doze milhões de lâminas, constituindo um sucesso enorme.

Voltando ao assunto de escrever: se a caneta-tinteiro, tão usada antes, agora está sendo pouco usada, é porque a esferográfica tomou conta do mercado. Ela é muito barata, mais ágil, não derrama – embora não permita uma letra bonita e de classe como a outra.

A caneta-tinteiro às vezes derramava a sua tinta. Quando a gente viajava de avião – olha só, falei em avião e o Soneca acordou – recebia, antes da decolagem, um recipientezinho de papel mataborrão para colocar a caneta, porque a diminuição da pressão ambiente fazia a tinta sair e emporcalhar toda a roupa.

Não, Soneca, a Tia Odete não andava de dirigível nem de biplano. Eram os DC-3, os Curtiss C-46 e outras coisas românticas, lentas e barulhentas.

O papel mataborrão recebeu esse nome porque ele absorvia a tinta. Ele era bem grosso e poroso, para esse efeito. A gente escrevia um pouco e passava o papel em cima da folha. Em algum tempo o papel estava saturado e era necessário trocá-lo.

Ah, se existisse papel mataburrão eu ia comprar resmas…

Mas eu tinha citado as esferográficas. Sabiam que este tipo de caneta foi inventado aqui na América do Sul?

Foi assim: o desenvolvimento delas começou na Hungria, logo antes do começo da Segunda Guerra Mundial, com um jornalista chamado Laszlo Biro. Com seu país invadido, ele se refugiou na Argentina, onde patenteou a idéia em 1943.

Nesse ano, um inglês comprou os direitos da invenção e a caneta começou a ser produzida na Inglaterra, para poder ser usada pelos navegadores de bombardeiros. Eles não podiam usar canetas-tinteiro nas alturas em que voavam, pois a tinta fazia uma grande sujeirada. As primeiras esferográficas da Europa foram feitas por um grupo de dezessete moças num hangar abandonado.

O lançamento das canetas para o público civil foi feito em Buenos Aires no começo de 1945. A marca “Birome” foi conhecida na Argentina por muito tempo, chegando a constituir um substantivo comum, como “celofane” e “frigidaire”. Ou seja, um epônimo.

Nessa época, as esferográficas foram vistas em Buenos Aires por um comerciante americano esperto, que descobriu que o Sr. Biro não havia patenteado o objeto nos Estados Unidos. Ele voltou correndo para a sua terra e lançou lá o produto.

No primeiro dia de vendas, 29 de outubro de 1945, foram vendidas dez mil canetas, apesar de serem ainda caras.

Viram só? Quando patentearem algum invento, tratem de pensar bem o que estão fazendo.

Artur, largue já essa borrachinha e o clipe! Era isso então que você estava aprontando. Não vê que pode machucar alguém se atirar? Passe para cá.

Já que estamos falando em invenções, vocês já perceberam que invenção simples e útil é o clipe para papéis? Um aramezinho torcido do modo certo e pronto, já podemos unir nossos papéis espalhados.

Papéis, Robertinho, papéis. Não, na Antigüidade não se prendia papiros ou pergaminhos com clipes, pois este só foi inventado em 1900, quando aqueles materiais já não eram usados no dia a dia. Foi um norueguês chamado Johann Vaaler que teve essa idéia genial.

E idéia é tão simples que a única alteração feita nela até hoje, lá por 1950, foi fazer uma pequena dobra para fora da ponta interna do clipe, de modo a permitir que o papel entre mais facilmente.

Falando em material para escrever, no outro dia vi no jornal uma frase assim: “Eu reconheci a caligrafia dele”.

Vejam só. Esta palavra está sendo usada para dizer “a letra, a escrita, a grafia dele”. Mas está errado usá-la assim. Caligrafia vem do Grego kalós, “bonito” mais graphéin, “escrever”.

Na verdade, o sentido original desta última palavra era “arranhar, sulcar, marcar” como em pedra, passando depois a significar “escrever” por modos de qualquer tipo.

Logo, dizer caligrafia é dizer “letra bonita”. Que é uma coisa que vocês aqui jamais vão ter se não começarem a escrever logo e muito. Hein? Está bem, o Zorzinho escreve muito e nem por isso tem letra bonita, mas aposto que quando ele for grande as pessoas vão fazer fila para ler os escritos dele, de tão linda que vai ser a letra.

Agora, com o uso do computador, as letras à mão cada vez ficam cada vez mais horríveis. Vai-se poder falar mais apropriadamente em cacografia, de kakós, “feio” em Grego.

Agora está tocando o sinal para a saída. Sejam kalós e saiam em ordem. Nada de fazer coisas kakós por aí. Até amanhã.

Resposta:

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