Depressão
Outra noite de trabalho para X-8, o mais famoso detetive etimológico do seu bairro. Bairro, aliás, que está muito mais quieto do que costuma. O ar está imóvel e abafado nas ruas mal-iluminadas. Elas contêm muito mais lixo do que de costume. Quase ninguém é visto caminhando pelas ruas. Até os ratos do esgoto estão quietos hoje.
O que houve? Sequelas das festas de fim de ano, ora. Muitas pessoas e palavras estão curtindo monstruosas ressacas ou descomunais indigestões. Ou então estão fazendo curativos por causa das brigas em que se meteram durante os festejos pela paz, pelo amor e pela renovação das esperanças. Ou as três coisas.
Não é o caso de X-8. Ele é abstêmio e não dá muita bola para comida. As únicas brigas em que ele se mete são no terreno das idéias, o que não machuca ninguém.
Assim, ele está inteirinho e aberto normalmente para o trabalho nesta noite anormalmente quieta. Está pensando que talvez devesse fazer um recesso, entrar em férias ou algo assim. Claro que “tirar férias” para ele seria ficar no seu escritório apenas lendo, pesquisando e enchendo a cara de refrigerante bem gelado, mas ele apreciava essa forma de descansar.
De modo que ele está no claro-escuro do seu escritório, sentado à cadeira giratória guenza de madeira, pés sobre a enorme escrivaninha, o chapéu enterrado na cabeça, suando sob a sua gabardine folgada, nesse processo de matutar, quando batem à porta.
Enquanto ele se levanta para atender – lentamente, que ele não quer dar a impressão de que está muito disponível ou ansioso por clientela – ouve sussurros nervosos do outro lado da porta.
Ele a abre e vê dois vultos, mal iluminados pelas escassas e fracas lâmpadas do corredor. Convida-os a entrar, acomoda-os em duas cadeiras e se senta atrás da escrivaninha.
Olhando melhor, vê que são as palavras Expresso e Depressão. Em seu melhor estilo lacônico Clint Eastwood, ele as olha sem dizer nada.
Nesse momento, Depressão parece achatar-se e tenta escapar. A outra palavra a agarra pela gola e a obriga a sentar, falando com o profissional durão que tem à frente:
– Senhor X-8, viemos para ver se o senhor pode fazer alguma coisa pela minha amiga aqui. Desde que nasceu ela anda assim, se arrastando pela vida, sem achar graça em nada, dizendo que nada vai dar certo…
A família e os amigos já tentaram de tudo: vitaminas, cirurgia pelo astral, rezas a Santo Expedito… Nada. Inclusive já fizeram várias promessas para ela cumprir, como ir de joelhos até o topo do Cristo Redentor, mas nada funcionou.
Eu sou um amigo devotado dela, acho que ela tem um grande potencial – inclusive as oportunidades de trabalho dela têm aumentado constantemente – mas ela só pensa que está tudo ruim, que nada presta, tem idéias até perigosas.
O senhor é o nosso último recurso. Mesmo não sendo médico, o senhor lida com palavras e talvez consiga fazer algo por ela.
O detetive assentiu com a cabeça. Expresso continuou:
– Tenho aqui um folheto com os honorários que o senhor cobra, que outra cliente sua nos emprestou e juntamos o dinheiro… – o detetive, achando-se o máximo porque até agora não tinha dito nada, estendeu a mão para o folheto, que lhe foi entregue.
Para espanto das palavras, rasgou o papel e o jogou num cesto de lixo. Abriu uma gaveta, puxou outro folheto e o entregou à palavra, rosnando:
– Ano novo, preços novos.
E eram bem salgados os ditos cujos. Que fazer? As palavras entregaram o dinheiro que tinham levado e combinaram de pagar o resto quando viessem receber o resultado das perigosas investigações que o detetive faria destemidamente para servir à sua cliente. Pelo menos foi disso que ele as convenceu.
Depois que elas saíram, ele pegou sua caneta Parker 51 da década de 40, com tinta azul-real, o papel creme que ele gostava de usar para seus rascunhos, e se dirigiu aos livros que lotavam suas estantes.
Feita a pesquisa, ele sentou em frente à máquina de escrever antiga e desalinhada e bateu o seguinte:
DEPRESSÃO –
Eis aqui uma palavra pertencente a uma antiga e muito espalhada família nos idiomas ocidentais. Ela deriva de uma raiz Indo-Européia prem-, “atacar, golpear”, que se fixou no Latim como premere, “apertar, comprimir, empurrar contra”. Podemos citar algumas parentes:
Opressão: de oppressio, “esmagamento, aperto”, formado por ob-, “contra”, mais premere. Quem é oprimido conhece a desagradável sensação de ser apertado contra alguma coisa sólida, sem possibilidade de escapar.
Supressão: de supprimere, “fazer parar, esmagar”, de sub-, “para baixo”, mais premere.
Gethsemani: por esta ninguém esperava, hein? O local onde conta a Bíblia que Jesus passou sua última noite era chamado, em Aramaico, gath shemani, “prensa de óleo”, porque era por ali que eram processadas as azeitonas colhidas no local, o Horto das Oliveiras. Tem parentesco com premere apenas pelo sentido, não pela palavra, mas incluímos essas informações gratuitamente aqui apenas como demonstração de nossos bons serviços.
Reprimir: de reprimere, “manter fora, repelir”, formado por re-, “para trás”, mais premere, aqui com o sentido de “empurrar”. É uma palavra usada desde 1471 com o sentido de “acabar com uma rebelião”.
No sentido psicológico, é usada desde 1904.
Espresso: isso mesmo, com “S”. É como se chama, na Itália, o tipo de café que é coado sob pressão em máquina especial e particularmente barulhenta. Em nosso país, talvez poucas cafeterias tenham coragem de oferecer Caffè Espresso, que é o nome italiano, porque a maioria ia achar que está mal escrito.
Expressão: vem de exprimere, “representar, descrever”, literalmente “imprimir, moldar”, tendo passado pelo sentido intermediário de “material moldável que toma forma sob pressão”.
O verbo se forma por ex-, “fora”, mais pressare, “apertar, empurrar”.
Essa palavra também foi aplicada para designar “mensageiro especial”, de onde nos veio o sentido de “veloz, rápido”, usado para entregas.
No Velho Oeste havia o Poney Express, que usava mensageiros trocando de cavalos de trecho em trecho. Se confiarmos nos filmes de mocinho, uma das razões da sua excepcional velocidade eram os índios que andavam sempre correndo atrás deles.
De formas que, veja a prezada cliente, a palavra Expressão, que tão gentilmente a acompanha em suas visitas a este escritório detetivesco vem a ser sua parente.
Impressão: de imprimere, “aplicar com pressão, fazer uma imagem em”. O verbo se forma por in-, “em”, mais premere. Tanto se aplica à impressão em papel como à sensação que uma pessoa causa no espírito de outra.
Compressão: de comprimere, “apertar junto”, de com-, “junto”, mais premere.
Depressão propriamente vem de depressare, do verbo deprimere, “prensar, esmagar”, formado por de-, “para baixo”, mais premere, “apertar, comprimir”.
Assumiu o sentido de “afundamento de uma economia” logo depois da Revolução Francesa. Passou o ter significado clínico no jargão psicológico em 1905.
A escolha da palavra manifesta muito bem a sensação de esmagamento sem esperanças que uma pessoa que apresenta doença depressiva sente.
Dali a quinze dias, as visitantes retornam.
Pelo que elas sabem, o corajoso detetive, nesse tempo, viajou para pesquisar em bibliotecas desconhecidas, deslocando-se no submundo da cultura habitado por perigosos rufiões, assaltantes e falsificadores. Ele passou perigos terríveis, dormiu em camas pulguentas em quartos de pensões sórdidas, sempre tendo que se cuidar de um punhal que poderia partir de trás de uma cortina rasgada num cabaré ou da bala que seria desferida de um Smith & Wesson calçando um calibre Magnum .357 ou de uma corda de seda desejosa de conhecer mais de perto o seu pescoço.
Não era difícil imaginá-lo parado numa esquina, confundindo-se com o ambiente sujo ao redor, esperando pelo sinal que um informante lhe faria saindo de um beco mal-cheiroso.
Mas, enfim, elas estavam pagando regiamente por esses serviços.
O detetive entregou o texto, levemente sujo e cuidadosamente amassado, num envelope pardo, sem dizer nada além de estender a outra mão.
Depressão, evidentemente mais animada naquele dia por estar recebendo informações sobre si mesma, atreveu-se a perguntar:
– Foi muito difícil?
– Pfhht! – foi o som que saiu debaixo do chapéu. O gesto da cabeça demonstrava que ele tinha revirado os olhos para o alto.
Expresso, não deprimido nem reprimido, achando o máximo aquela situação (palavras são lou-qui-nhas por aventuras etimológicas), quis saber:
– Houve mortes?
O detetive hesitou. Para as palavras, ele evidentemente se debatia com o seu sentido ético profissional. Na verdade, ele estava era achando que estava falando demais, mas como achou que um pouco de conversa faria bem a Depressão, respondeu levantando dois dedos.
Um arrepio perpassou pelas palavras. Então aquela consulta havia redundado nisso? Não se atreveram a perguntar mais, mas estavam certas de que os bandidos haviam merecido o que lhes havia acontecido.
Depressão indagou ainda:
– Pelo menos foram rápidas?
X-8, profundo conhecedor do íntimo das palavras, percebeu que, se ele desse a entender que as propaladas mortes haviam sido lentas, aquela cliente poderia afundar mais ainda em suas tendências. Ergueu os ombros rapidamente, uma mão com a palma para cima e a outra apontando para si mesmo, querendo dizer “Vocês pensam que sou incompetente, que tenho má pontaria?”
As palavras pegaram o envelope e voltaram prestas para suas casas tranqüilas na parte boa da cidade, bem iluminada, limpa e segura.
O detetive, enquanto contava o dinheiro que tinha recebido, pensava:
– “Puxa, e saber que um comprimidinho por dia faria tanto bem a essa palavra! Acho que vou telefonar para ela e encaminhá-la para tratamento. O meu terapeuta mais cedo ou mais tarde vai ter que começar a tratar palavras, que eu sozinho sou pouco”.