Palavra lavabo

LAVAR

 

O Detetive das Palavras X-8 se prepara para receber mais uma palavra-cliente esta noite. Ela marcou hora com antecedência e ele está muito curioso. Ele se tem dedicado aos atendimentos coletivos ultimamente  –  ou seja, explica as origens de grupos de palavras que têm uma origem em comum. Desta vez ele vai atender uma única palavra, mas uma que deu origem a muitas outras.

Ele devaneia, sentindo-se honrado por uma presença antiga e venerável. Será que sua roupa está bem ajeitada? Seu chapéu não está sujo? Será que ele deve aumentar os seus honorários?

No meio disso, uma batida seca à porta.

Após um “Entre” que saiu meio esganiçado pela emoção, a cliente entra e se acomoda na poltrona que X-8 reserva para mafiosos e palavras importantes.

Trata-se da palavra latina lavare, “lavar, limpar, retirar a sujeira de algo por meio de um líquido”. Ela emana um delicado cheiro de lavanda e se apresenta escrupulosamente bem cuidada.

Tratando de engrossar a voz para desfazer a má impressão inicial, o bravo Defensor das Palavras e da sua própria conta-corrente faz a devida saudação:

– Prezada palavra, é um especial prazer estar na presença de alguém que deu origem de numerosos e úteis vocábulos atuais de nosso idioma.

A cliente assentiu graciosamente. Prosseguiu o grande profissional:

– Para iniciar, devo informar que a senhora deriva da raiz Indo-Europeia lu-, “lavar, limpar”. E que gerou o Grego lúein, “lavar o corpo”.

Além disso tinha em Latim uma forma irmã, luere, que também gerou uma conhecida descendência.

Vamos falar agora sobre suas netas e bisnetas, tal como se apresentam hoje para os povos lusófonos.

Para começo, posso citar as mais óbvias, como lavar, lavagem, lavanderia, que dispensam apresentações e explicações.

Temos também lavabo, que designa uma oração da liturgia católica durante a missa, o ato ritual de lavagem dos dedos nessa ocasião e também a toalha impecável com que as mãos do sacerdote são secas depois disso. Por extensão, aplica-se também a uma pia ou lavatório. Vem direto do Latim lavabo, “lavarei”.

Outra descendente é lavanda. Esta designa uma loção ou líquido usado para limpeza e refrescamento da pele, originalmente feito com óleo da plantinha chamada lavendula em Latim.

Isto é interessante, pois o nome desta planta tem origem desconhecida e ela parece ter sido associada em Italiano ao ato de lavar não só pela semelhança com lavare como porque as flores da planta eram usadas para perfumar a roupa lavada e, como dissemos, para limpeza da pele.

Em jantares muito chiques se coloca um recipiente com um líquido para lavagem das mãos à mesa, depois de retirados os pratos. Pessoas despreparadas são capazes de tentar beber esse líquido.

X-8 corou violentamente ao se lembrar da vez em que fora convidado para jantar na casa do reitor de sua Faculdade. Felizmente a cliente não notou nada porque o rosto dele estava sempre encoberto pelo chapéu de abas largas.

– E como falamos em loção há pouquinho, cabe dizer que essa palavra vem do Latim lotio, “ato de lavar, limpeza”, de lotus, particípio passado de lavare.

Posso lembrar também dilúvio, a palavra que aparece na Bíblia designando uma inundação catastrófica e que hoje também é usada para indicar “grande quantidade” de alguma coisa. Ela veio do Latim diluvium, “grande enchente, inundação”, de diluere, “retirar coisas de um lugar com água”, de dis-, dando a ideia de “afastamento”, mais luere.

Outra palavra que vem de diluere é diluir, usada para se referir à diminuição de densidade de um líquido pela adição de água.

E mais uma é o pedilúvio, “banho dos pés”, formada pelo Latim pes, “pé”, mais luere ou lavare. Sua companheira é o manilúvio, “banho das mãos, ato de lavá-las”, de manus, “mão”.

Esses banhos se destinavam principalmente a tratamentos médicos.

Indo para formas diferentes, ablução, “lavagem de parte do corpo”, se forma por ab-, “para fora”, mais luere.

Ainda no item higiene, existe a latrina, de lavatrina, “banho”, de lavare.

Passando para os tecidos, a palavra francesa délavé que se aplica aos nossos jeans veio de dis-, aqui como intensificativo, mais lavé, “lavado”, de laver, mais uma descendente de minha prezada ouvinte.

Ora veja só, falei em dilúvio e ia esquecendo uma derivada direta desta, antediluviano. Ela se aplicou inicialmente a épocas ou coisas anteriores ao Dilúvio. Depois passou a querer dizer “algo antiquado, fora de moda, primitivo” e vem de ante-, “anterior a, o que veio antes”.

Com um som parecido, mas pouco conhecida, temos colúvio. Ela vem de colluere, também significando “lavar retirando material”, de com-, intensificativo, mais luere. É coisa de geólogos; refere-se ao material acumulado no sopé de elevações e que deslizaram por força da gravidade.

Outra noção que esse pessoal que anda com seus martelos por aí usa é a de aluvião. Isso designa uma quantidade de material como areia, pedras, etc., depositado pela passagem de correntes de água. Formou-se a partir de ad-, “a, para”, mais lavare.

Quase terminando, devo citar colutório, “líquido usado para bochechos e gargarejos”. Vem de collutorium, de colluere, “lavar”, formada por com-, “junto”, mais luere.

E terminando para valer, espero que ambos tenhamos hoje uma lauta janta. Este adjetivo significa “esplêndido, magnífico, abundante” e vem de lautus, derivado com alteração de significado de lavare.

Sendo o que se apresentava para o momento, acompanharei minha cliente até à porta e me despedirei, realçando que a sua presença muito me honrou esta noite.

Educadíssimo, o detetive retirou a luva de fino couro antes de beijar a mão da palavra que acabara de atender.

 

Resposta:

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