SONHOS DE UMA PROFESSORA
Cá estou entrando em minha aula. Um dia perfeitamente normal. De saída vejo a Patty encabeçando um cortejo de dança, Aninha e Lary sobre a minha mesa aos pulos, Sidneyzinho tentando agarrar uma das meninas, Valzinha contando alguma coisa horrorosa num canto, Zorzinho anotando tudo em seu caderno apesar de não saber escrever.
Quietos! Parados! Imóveis! Não falem, não ouçam, não respirem! Sentem-se em seus lugares e ouçam.
Por um dia pelo menos vou falar nas origens das palavras que designam qualidades que todos os professores do mundo adoram. Exatamente as que faltam a vocês, aliás. Escutem com atenção ou vão perder o recreio hoje.
Respeito, por exemplo. Veio do Latim respectus, particípio passado de respicere, “olhar outra vez”, de re-, “de novo”, mais specere, “olhar”. A ideia é de que algo que merece um segundo olhar em tem qualidades que levam a uma atitude de consideração e reverência.
Vocês bem que podiam olhar para mim nos corredores do colégio e dizer baixinho: – “Lá vai a querida Professora Tia Odete, ela sabe muito de Etimologia e é extremamente paciente conosco!”
Mas não, assim que me veem saem correndo e berrando.
Também poderiam ostentar alguma disciplina. Esta veio do Latim disciplina, “instrução, conhecimento, matéria a ser ensinada”. E esta deriva de discipulus, “aluno, aquele que aprende”, do verbo discere, “aprender”. Gradualmente se lhe agregou um novo significado, o de “manutenção da ordem”, que esta pobre sofredora gostaria tanto de ter em sua aula.
Outra coisa que seria encantador de ver seria obediência. Este maravilhoso ato de seguir as diretrizes dadas por uma autoridade superior – no caso, eu – veio do Latim oboedire, “prestar atenção, a, escutar com seriedade”, de ob, “a”, + audire, “escutar”. É difícil eu ser ouvida em nossa aulinha, que dirá obedecida.
E não faria mal algum se meus aluninhos se dedicassem ao estudo, que se origina de studiare, de studium, “estudo, aplicação”, originalmente “ansioso por fazer algo, sério”, de studere, “ser diligente”, em suas raízes “empurrar para a frente”, do Indo-Europeu steu-, “bater, empurrar”.
Graças aos seus maus hábitos ainda não consegui que aprendam a extrair raiz quadrada de cabeça.
Não, Robertinho, nada a ver com guiar as diligências dos filmes de mocinho. Aqui o sentido é o de “atenção, cuidado, esforço para realizar algo”.
Menino esquisito esse, que ainda vê esse tipo de filme.
Iih, mais interrupção… Que é Valesquinha? Sim, um tio seu era artista plástico, que bom! Ele tinha um estúdio onde a mulher dele descobriu que ele se dedicava a fazer coisas de que ela não gostava e aí um dia ela queimou todas as telas dele… Bem, vamos deixar esse assunto de lado porque eu preciso dar a matéria para não nos atrasarmos no currículo quando chegar o fim do ano, isso é muito importante.
Como as intervenções de você me fizeram lembrar, outra característica que chama a atenção pela ausência por aqui é o silêncio. Esta palavra vem do Latim silentium, “ato de estar quieto”, de silere, “ficar quieto, evitar ruído”.
Se você ficassem quietos e evitassem ruído com certa frequência, o resultados de minhas audiometrias seria bem melhor.
E se prestassem mais atenção aos conhecimentos que lhes trago, seria melhor para todos. Esta palavra vem do Latim attendere, “prestar atenção a, observar”, literalmente “esticar-se para”, formado por ad, “a”, + tendere, “alongar-, esticar, estender”.
Bonita metáfora, não é bem assim que a gente faz para prestar atenção? Ah, esqueci-me de que vocês não sabem o que é fazer isso.
O que tampouco ficaria mal seria mais capricho em seus deveres para casa. Capricho, aqui citado como “esmerado, bem realizado, bem apresentado” é uma palavra curiosa. No sentido de “inconstância, volubilidade”, vem do Italiano capriccio, do Latim caper, “cabra”, do Grego kápparos, “cabra”. Isso porque dizem que uma cabra costuma ser vivaz e inquieta.
O sentido de “esmero, cuidado” parece ser restrito apenas ao Português e em meus estudos não encontrei explicação que o ligue quanto à origem.
Sei dizer que, quando eu era aluninha – sim, Tia Odete já foi aluna e teve a mesma idade de vocês – eu ficava intrigada quando a professora elogiava um trabalho bem feito e dizia que era “feito com capricho” e pouco depois falava mal de “crianças caprichosas”, querendo dizer que eram inconstantes e exigentes.
Vejam só, depois de tantos anos ainda não descobri qual a razão.
Também seria bom se vocês se dedicassem com mais afinco aos deveres, o que nos veio de afigicare, uma forma do verbo figere, “cravar, fincar”. Dá vontade de fincá-los com um prego nas cadeiras para que trabalhem um pouco.
Que é isso, não fiquem com os olhos arregalados desse jeito! Tia Odete nunca faria tal coisa com vocês. A escola não fornece pregos nem martelo.
Mais um desejo inatingível desta que vos fala seria que vocês cuidassem mais da apresentação dos seus deveres. Essa palavra deriva do Latim praesentare, “dar, mostrar para aprovação, exibir”, de praesens, formada por prae-, “à frente”, mais esse, “ser, estar”.
Na hora de exibir o que fizeram, o quadro é dos mais tristes. Isso por falta de cuidado, o que faz as folhas se apresentarem dobradas, amassadas, rasgadas e portando os borrões mais incríveis.
Cuidado vem de cogitare, “pensar, cogitar”. Para fazer algo com cuidado, é preciso pensar. Mas me parece que isso é demais para vocês.
Finalmente, para encerrar esta lista de sonhos impossíveis, vem a dedicação, que deriva do Latim dedicare, “consagrar, afirmar, colocar à parte, proclamar” , de de-, “de lado, fora”, mais dicare, da raiz de dicere, “dizer, falar”. No sentido de “entrega, sacrifício por alguma coisa, consideração”, é artigo em grande falta não só nesta aulinha como na maioria das que conheço atualmente.
Enfim, agradeço por terem ouvido este desabafo e agora saiam para o recreio. Tratem de não matar ninguém por lá, por favor.