X-8 está nervoso. No dia anterior não tinha tido nenhuma palavra cliente. Hoje o seu horário de trabalho está por terminar (já passa das nove da noite; ele fecha a sua porta rigorosamente às dez, se não estiver atendendo a freguesia) e nada ainda.
Palavras ingratas, que deixam de consultar depois de todos os sacrifícios que faz por elas! Está certo, os seus preços são bastante altos para o trabalho que ele tem, mas o que conta é a importância do seu trabalho para elas.
Se fosse barato, que valor elas iriam dar para o conhecimento das suas origens? Elas apenas teriam um papel com umas explicações que prontamente iriam esquecer numa gaveta.
Mas o que ele produz é cercado pelo mistério de um escritório de detetive com uma decoração que é legítima imitação das histórias dos anos 50, com sujeira, teias de aranha, com um intrigante detetive de capa e chapéu que afirma correr enormes riscos. É um documento altamente qualificado.
E é assinado por um profissional que fez a Faculdade de Etimologia, o Curso Ataliba por Correspondência para Detetives Particulares e ainda se pós-graduou na Academia de Detetives Etimológicos. Foi o primeiro colocado na sua turma.
Verdade é que ele era o único, mas e daí? O diploma está lá na parede para comprovar, e não diz quantos alunos havia.
Ele se sente acabrunhado pelo descaso das palavras. Por que não estão comparecendo como antes? Como é que ele vai manter o seu saldo ascendente no banco desse jeito? Com os chocolates finos cada vez mais caros, os livros importados então nem se fala, aquele carro estrangeiro que ele andava namorando…
Comprar à vista, como? E submeter-se aos juros escorchantes desses ladrões que não têm dó do dinheiro alheio, que tudo o que querem é sugar o sangue dos pobres clientes, é uma indignidade.
Ele pensa que, desse jeito, em menos de vinte anos vai ter que colocar uma banquinha na calçada e ficar apregoando:
“Olha a etimologia boa e barata! Saiba as suas origens na horinha! Aqui, minha senhora, aqui, meu senhor! Sai uma prô cavalheiro ali, outra para a menina aqui! Vamos lá, pessoal! É bom, é importante, é baratinho! Por umas moedas você descobre seus antepassados! Aí, gente! Concorra ao sorteio de uma camiseta no fim do ano! A cada dez encomendas você recebe um étimo grátis!”
Sente seus olhos se marejarem. Uma carreira brilhante indo pelo ralo, sem ao menos uma explicação plausível. Não dá para entend…
Pára, seus sentidos aguçados como um gato à caça, pois julgou ouvir passos pelo corredor vindo para a sua sala.
Ele gosta de pensar que ouviu passos porque é mais romântico. Na verdade, o que se ouve é o ruído do lixo a ser espalhado pelos pés de quem caminha: copos descartáveis, garrafas plásticas vazias, cacos de louça, caixas velhas e coisas que é melhor não mencionar.
Imediatamente sua coluna se ergue, ele fica teso, quieto e misterioso atrás da escrivaninha enorme.
Batem à porta; ele manda entrar. Passam pela soleira três palavras: Pera, Mosca e Vela.
– O senhor é que é o famoso, competente e audaz detetive que ajuda as palavras em necessidade? – diz Vela.
A figura dentro da capa de gabardine cor de palha parece inchar. Por entre a gola levantada e a aba do chapéu sai sua voz:
– Em carne, osso e principalmente cérebro, para servir as distintas clientes. Por favor, sentem aí no banco e abram os corações.
– Nós somos conhecidas de umas clientes suas que estiveram consultando não faz muito, Sessão, Cessão, Seção…
– Eu me lembro do caso. Fiz um atendimento conjunto de urgência, pois elas estavam muito deprimidas e em risco grave e iminente.
– Pois é – disse Pera – elas nos contaram que o conheceram quando o senhor estava falando com o dono do barzinho ali em frente.
Aliás, pelo que elas viram, parecia que o senhor o estava apertando, dando-lhe um duro. Ficaram achando que decerto ele andava fazendo alguma coisa ilegal e que o senhor, mesmo correndo risco de vida numa espelunca daquelas, foi dizer para ele voltar à linha para não ter que enfrentar os seus punhos ou coisa parecida.
Dava para perceber que aquela palavra gostava de traçar uma reta a partir de um único ponto. X-8, que sabia muito bem que Garcia, o sujeito do bar, tinha sido o seu fornecedor quando ele estava nas garras do vício, mudou logo de assunto.
– Sou uma pessoa muito reservada e modesta. Prefiro que não falem sobre meus feitos heróicos na minha frente. Quem sabe passamos ao motivo da simpática vinda de vocês?
– Bem, doutor X-8 – falou Mosca – nós não temos problemas de homofonia como aquelas nossas amigas (elas nos explicaram tudinho o que o senhor falou). Mas nos atrapalhamos ao ter que atender usuários que nos destinam a significados muito diferentes.
Não é tanto que isso nos incomode, só queríamos saber o por quê. Até trouxemos dinheiro para pagar, já que sabemos que o senhor é capaz de atender na hora a qualquer dúvida.
E agora? No atendimento a que elas se referiam, X-8 tinha tido preciosos minutos para pesquisar rapidamente a etimologia das palavras que ele já sabia que iriam até ali consultar. Mas nem ele sabia a resposta assim de cor para uma dúvida como a que estava à sua frente. Quem mandou fazer aquela onda toda?
Mas ninguém pense que ele se deixaria atrapalhar por um probleminha desta ordem, não. Com a maior seriedade, ele colocou a mão direita na testa, ou melhor, na copa do chapéu, a esquerda num bolso, pensou um pouco e olhou para Mosca.
– Muito bem. Vamos começar por você. O seu caso é o seguinte; uma raíz Pré-Indo-Européia…
Foi quando se ouviu o som de “Tico-Tico no Fubá” saindo de dentro da sua capa.
– Desculpem. Só um momento.
Ele puxou um celular do bolso e começou a responder:
– X-8. Sim.. Não… Quem?… Como?… Onde?… Quando?… Quantas mortes?… Nenhum sobrevivente… Muito sangue… Sei… Certo, não se pode espalhar o pânico.
Isolem a área e não mexam em nada até eu chegar. Comecem a interrogar a vizinhança discretamente, sem que ela perceba. Tirem-nos da cama se for preciso, mas sem chamar a atenção. Não demoro.
Guardou o celular com o ar mais preocupado possível para quem tem o rosto oculto. Olhou para as suas clientes:
– Aconteceu uma coisa muito séria. Não posso dizer quem foi que ligou, nem dar idéia do que foi que houve. Apenas digo que há muitas vidas em risco se não agirmos logo. Daí se vê que não vou poder atendê-las agora; sou chamado para algo urgente e inadiável e simplesmente não posso desobedecer, devido a certas funções secretas que exerço. Vamos fazer o seguinte: voltem amanhã às vinte horas e dezessete minutos. Até lá já deverei ter resolvido o caso e poderemos falar com mais tranqüilidade. Sinto muito, mas uma pessoa comprometida com a luta contra o crime nunca é de todo livre, vocês entendem. Podemos descer juntos.
As palavras estavam de olhos arregalados, fascinadas por estarem participando de uma situação daquelas. Disseram que compreendiam muito bem a conjuntura e que não queriam atrapalhar.
Desceram os quatro pelas escadas escuras e sujas. Chegados à calçada, o detetive perguntou:
– Para que lado vocês vão?
– Para lá, disse Pera, apontando para a direita.
– Pena. O veículo do Serviço Secr… – pareceu atrapalhar-se – uma carona está me esperando para o outro lado. Até amanhã – parou de repente, como se só então se tivesse lembrado de algo – devo dizer que, se vocês ouviram alguma coisa do que eu falei ao telefone, devem esquecer. O assunto está sob a jurisdição da Lei dos Segredos Secretos, que não pode ser rompida. Não se esqueçam disso.
As palavras, impressionadíssimas, seguiram o seu caminho em silêncio. Só começaram a comentar aquela situação emocionante dali a duas quadras.
O detetive se afastou, passos de veludo, para o outro lado. Parou na esquina seguinte. Encostou-se a um poste e olhou para trás. Quando as palavras sumiram de vista, ele voltou rapidamente para o seu edifício, subiu depressa as escadas e entrou no escritório.
Chegado lá, congratulou-se mentalmente por ter comprado aquele celular de brinquedo que tocava ao apertar de um botão.
Igualzinho a um de verdade e bem barato nos camelôs. Um profissional que enfrenta tantos perigos deve sempre contar com todos os recursos para se safar.
Foi até à estante e começou a retirar livros. Espalhou-os sobre a escrivaninha, pegou seu papel de luxo e sua caneta-tinteiro e começou a rabiscar.
Algum tempo depois, ele organizou os seus achados e os estudou com muita atenção. Dando-se por satisfeito, foi dormir e teve sonhos muito bons.
Na noite seguinte, ele ouviu passos e cochichos no corredor, que cessaram até serem pontualmente as oito e dezessete. As palavras então bateram à porta e foram convidadas a entrar.
Encontraram o detetive à espera e se sentaram à sua frente, ansiosas.
Ele começou a falar como se não tivessem sido interrompidos na noite anterior de forma tão espetacular:
– Como eu ia dizendo, Dona Mosca, uma raiz Indo-Européia mu-, provavelmente derivada do zumbido desse inseto, acabou dando musca em Latim. Esta palavra virou mosca em Português e Espanhol e, muito industriosa, se prestou para diversas acepções.
Por exemplo, devido ao tamanho, forma e cor do inseto, passou a querer dizer “sinal, pequena mancha na pele”. Pelo mesmo motivo é o nome dado a um pequeno tufo de barba usado logo abaixo do lábio inferior.
Relacionado com esse aspecto, temos a palavra moscado, sinônimo de mosqueado, “cheio de pintinhas pretas”, como se se tratasse de um objeto recoberto por esses insetos.
Também se chama assim o centro de um alvo, por ser pequeno.
Falando em tamanho, há certos tipos de mosca que, por serem maiores que as outras, levam o nome de moscardo. Também na rubrica “tamanho”, peso-mosca é uma categoria de pugilista em torno dos 50 quilos de peso.
Em Medicina existe um sintoma chamado muscae volitantes, “moscas esvoaçantes”, que consiste em enxergar manchas ou cintilações e faz pensar em oxigenação cerebral deficiente.
Sendo esse um inseto cosmopolita e muito ativo, ele gerou diversos ditados e expressões. Um deles é o latino Aquila non captat muscas, “A águia não pega moscas”, que quer dizer que uma pessoa num cargo muito elevado não pode se preocupar com o que é insignificante.
Outro é Comer moscas, que descreve uma pessoa tão atarantada ou incapacitada que é capaz de ficar de boca aberta, sem perceber que os insetos estão entrando por ali.
Há umas palavras parecidas, mas que não têm a mesma origem. É o caso da noz-moscada. Esta última parte da palavra vem do Grego moskhos, “espécime jovem da espécie humana, mas principalmente da bovina”.
Essas duas letras -kh- tentam dar a idéia do som da letra chi em Grego, um som que não existe em nosso idioma, e que é como o do -ch– alemão. Por falta de representação adequada em Latim, acabou soando mesmo como -k-.
Em Latim a palavra passou para muschus, de onde derivou para uso no caso de um animal específico, o almiscareiro, moscado ou mosco. Como este animal tem uma glândula que produz uma substância, o almíscar, usada em perfumaria como fixador, palavras parecidas começaram a designar coisas que produzem odores marcantes.
Daí o nome da uva e do vinho moscatel: é um diminutivo da palavra moscato, “moscado”, com o sentido de “perfumado”.
As palavras estavam mudas, ouvindo aquele derramar de sabedoria. O detetive se voltou para outra:
Quanto à senhora, dona Pera, sua origem está no Latim pirum. A senhora tem outros significados devido ao seu formato.
A palavra, incomodada, pensou mais uma vez que deveria fazer a lipoaspiração que se estava prometendo há tempos. Mas não deixou transparecer nada.
O seu nome é usado para designar certos interruptores elétricos por causa disso. Pelo mesmo motivo são chamados assim os dispositivos de borracha com válvula que a gente usa para transferir ar ou líquidos em aparelhos, como aquele que os doutores usam para medir a pressão arterial.
Curiosamente, seu nome também é usado para uma pequena porção de barba mantida na extremidade do queixo. Logo, a senhora e Mosca têm uma relação casual com os barbeiros.
Agora era a vez de Vela.
– A senhora vem do Latim vellum, “tecido, pele, véu”. Como as velas dos barcos da antigüidade eram de tecido, a palavra passou a designar o equipamento que se pendurava das vergas para captar o vento que movia as naves.
A palavra vela podia nomear também os próprios barcos. Dizem que a beleza de Helena de Tróia “moveu mil velas”, já que essa seria a quantidade de barcos gregos que partiu para a guerra.
A expressão Desfraldar velas significa “partir”. Dar velas à imaginação é uma bela expressão para dizer que alguém se deixa levar pela criatividade.
Esse sentido de “véu, cobertura, pano” foi usado no verbo velar, que quer dizer “cobrir, tapar, disfarçar como com um véu”.
Já vela como “cilindro de cera com pavio, usado para iluminar” deriva do verbo velar com outro sentido, um sentido relacionado com o verbo latino vigilare, “vigiar”.
Este verbo vem do Indo-Europeu weg-, “estar atento, ser forte, vivaz” e do Sânscrito vaja-, “velocidade, força”.
Daí o verbo velar usado para “cuidar, ficar acordado, vigiar”. E daí velório, quando as pessoas vigiam por algum tempo o corpo daquele que partiu.
A vela como fonte de luz originou, por semelhança de forma e, principalmente, de função, o nome da vela dos motores à explosão, já que ela emite uma faísca quando em atividade.
A forma e a cor, mas não a função, foram lembradas para designar a vela do filtro, aquele cilindro de substância porosa que é usado para retirar impurezas da água.
Velar um filme significa expô-lo a uma luz forte e queimar as imagens registradas. Se for de perto, até a luz de uma vela serve. Existe até a frase “Fulano velou o meu filme”, querendo dizer que ele trouxe algum tipo de prejuízo, geralmente de reputação, ao que fala. Com a invasão das câmeras digitais, é possível que esta frase desapareça em algum tempo. Talvez vire “Fulano estragou o meu cartão de memória” ou coisa parecida.
X-8 parou de falar e se levantou. As palavras perceberam que a sessão cultural estava terminada. Levantaram-se para sair, naturalmente depois de pagarem os honorários detetivescos. Antes de chegarem à porta, Mosca se virou para trás e perguntou, timidamente:
– Ãããh…o assunto de ontem correu bem, espero? Não vimos nada no jornal nem na TV…
O detetive pareceu hesitar antes de responder:
– Nem verão. Não adianta procurar. Mas os responsáveis já pagaram pelo que fizeram.
Pêra disse, com um tremor na voz:
– Estão na cadeia?
X-8 disse, sua voz máscula demonstrando, nas entrelinhas, que era melhor elas não tentarem saber nada:
– Eu disse que eles pagaram por isso, não que foram presos. E agora, por favor, lembrem-se de esquecer o que aconteceu. Adeus.
As três palavras saíram, completamente arrepiadas.
Antes de deitar naquela noite, X-8 pensou que estava por nascer a palavra que fosse mais forte do que a sua criatividade.