Cor [Edição 51]
Meu avô me recebeu em seu gabinete cheio de livros, estofados em couro e conhecimentos. Da altura dos meus doze anos, eu estava indignado com as exigências do estudo:
– Eles tiveram a coragem de exigir que eu aprenda umas coisas de cor! Onde já se viu?
O cavalheiro magro e com curta barba branca riu e me disse que isso fazia parte do estudo, que sempre haveria algo a saber de memória, e continuou:
– Sua primeira e emburrada frase, por exemplo, me fez lembrar de algo. Sabe a origem da expressão de cor?
– Não, mas tenho a impressão que isso vai terminar já-já – e me sentei no banco de couro onde eu aprendia tanto com o velho.
– Pois vem do Latim cor, “coração”. Em épocas antigas, ele era considerado, entre outras coisas, a sede do conhecimento no corpo humano.
– Que burros, Vô! Eles não tinham descoberto o cérebro ainda?
– Há muito tempo, desde que pela primeira vez ocorreu a um homem das cavernas abrir o crânio de outro para ver o que tinha dentro. Mas não sabiam para que servia aquele material cinzento e desestruturado, além de dar dor de cabeça.
Essa noção era tão forte que ficou também no Inglês, onde to know by heart, literalmente “saber pelo coração”, equivale ao nosso “de cor”.
– Daí o verbo “decorar” também, Vô?
– Sim. Eu sempre disse que você é mais inteligente do que parece. Mas achei graça em perceber que, naquela sua frase, apareceu outra palavra com a mesma origem: coragem.
Ela vem de coraticum, derivado de cor, também pela noção de que o órgão era a sede desta qualidade menos comum do que se pensa.
– Agora me lembro de ter visto um filme com aquele Ricardo Coração de Leão.
– Isso mesmo, seu apelido vinha de sua bravura. Mas parece que, fora isso, ele não tinha muito mais que prestasse, pois era conhecido por se esquecer das promessas e tratos.
Mas do Latim cor também veio a palavra cordial, significando “referente ao coração, ao afeto”. Assim, a cordialidade é algo que deve reinar entre as pessoas numa reunião, embora nem sempre aconteça.
Agora se usa pouco em nosso idioma, mas cordial também tem outro sentido: o de “alimento ou bebida usado para estimular o coração”.
Farmacologicamente isso não tem fundo de verdade; na realidade, era apenas uma desculpa para tomar um trago de álcool fingindo que não era por prazer e sim por imposição da saúde.
– Meio sem-vergonhas, não? Dando desculpas médicas para isso…
– Sem dúvida.
– Deixe ver… E o que corda tem que ver com o assunto?
– Ah, meu neto que deseja ser esperto e não sabe quanta palavra há de rolar pelos seus olhos para ele ter alguma noção mais sólida! Essa palavra nada tem a ver, deriva do Grego khorde, “tripa de animal, corda”.
– Mas não me diga que acordar, aquilo que a gente tem que fazer todos os dias para ir ao colégio tem parentesco!
– Pois tem mesmo. Esse verbo vem de cordatus, “prudente”, que vem de cor. É muito prudente acordar a tempo para ir à aula, ouviu? Ou podem ocorrer danos irreparáveis nas orelhas do aluno teimoso.
E aprenda que o verbo acordar também tem o significado de “combinar, tratar”, provavelmente de ad-, “a, junto”, mais cor.
Outra palavra que vem de cor é, por exemplo, concordar. Forma-se de com-, “junto”, mais cor.
– Ou seja, as pessoas que concordam em algo estão com os “corações juntos” naquele assunto, é isso?
– Perfeito. E as que discordam estão com os corações dis-, isto é, “afastados, fora”.
– Bonito, Vô!
– Eu sei, por isso é que aprendi tanto sobre esse assunto das palavras. Quando a gente aprecia o que está estudando, absorver os conhecimentos fica fácil.
Aprenda de cor essa lição, rapaz. Agora crie coragem e volte a decorar o que for necessário.