Palavra capim

Tupi

Eu andava pelos meus quinze anos. Cheguei à casa do meu avô, cumprimentei o gato Ernesto e logo fui para o seu gabinete.

Do meu avô, não do gato. Espiei da soleira da porta e o vi limpando um tacape de quase um metro de comprimento, uma maça de guerra indígena em madeira bem escura, com o cabo enfeitado por um bonito trançado.

Era mais uma das peças interessantes que ele mantinha como enfeite, além de um sabre de oficial, uma carabina do fim do século XIX, lanças e flechas indígenas.

– Vai à guerra com os seus antigos colegas de aula, Vô? – eu adorava provocá-lo só para ver a rapidez das respostas do velho.

Ele voltou para mim seus olhos claros e respondeu, muito sério:

– Nada disso. Estou apenas me preparando para o caso de surgir algum adolescente chato para me incomodar. Olhe só que belo tacape eu vou usar na cabeça dele! – e me estendeu a clava. Ela era em madeira de lei, pesadíssima.

– Puxa, como é que eles conseguiam erguer isto, Vô?

– Ah, meu neto, quando os outros merecem a gente sempre dá um jeito… – e me olhou com aquele jeito ameaçador que me aquecia o coração porque eu sabia que era puro carinho.

– Ah, meu Avô, acalme-se que eu sou um neto muito bonzinho que agora está é merecendo umas explicações. Essa palavra é indígena, né? Até agora o senhor me falou em palavras que vêm de tudo que é idioma europeu, mas acho que nada que venha de nossos índios. Não ficou nada do idioma deles no nosso?

– Se ficou, rapaz. Nós usamos muitas vezes termos do Tupi sem saber. Por exemplo, tacape vem de taka′pe, relacionado a pemba, “nodoso, com ângulos”.

Acho que, para provocar o inimigo, eles primeiro o cutucavam com essa arma. Essa palavra vem de kutuk, que queria dizer “espetar, fuçar, mexer em”.

Para endurecer vários dos artefatos de madeira que eles faziam, eles os sapecavam no fogo. Tal verbo deriva de apek, “chamuscar”.

– E as moças sapecas, Vô? A Mãe diz para eu me cuidar com elas. Não me diga que elas queimam a gente – ele deu uma risada:

– Queimam, rapaz, se queimam… E às vezes ocorre incêndio com perda total. Mas essas coisas não adianta falar; só se torrando a gente aprende. Essa palavra usada como adjetivo deriva mesmo de apek: quando uma pessoa pisa na fogueira sai pulando, o que é usado como metáfora para uma moça assanhada. Mas vale para rapazes também, não pense que não.

– Vou ser um velho coroca e ainda não vou entender este mundo.

– Vai entender sim, só que aí não adianta mais… – e o velhote riu a mais não poder – mas deixe para lá essas coisas, que não quero desanimá-lo de enfrentar a vida. Aproveitando o que você disse, coroca vem também do Tupi, de kuruk, “resmungão”.

Olhei-o com ar inocente demais, cheio de segundas intenções, e ele brandiu o tacape em minha direção, enquanto erguia um dedo ameaçador.

– Eu não disse nada, Vô! – protestei.

– Mas sei muito bem em quem você pensou. Fique muito quieto senão não conto que aquela fruta que lhe servimos no outro dia e de que você gostou muito, a jaboticaba, vem de yaboti′kaua, sendo a primeira parte da palavra o nome do quelônio, nosso jaboti, e kaua, “lugar onde”.

– Agora o senhor vai me dizer que os jabotis sobem na árvore para tirar as frutinhas?

– Acho pouco provável. É mais fácil que eles se reúnam ao redor do tronco para comer as que despencaram. De qualquer modo ele é um bicho paciente, que pode esperar que elas caiam. Por isso é que recebeu esse nome, pois yy-abu-tim quereria dizer “persistente, com muito fôlego”. Há muitas histórias no folclore indígena sobre esse animal, sempre mostrado como muito esperto.

E falando em animais, temos o famoso jacaré, que apesar de tão conhecido não tem origem muito bem definida. Há quem diga que vem de yaca′ré, “sinuoso, com curvas”, o que descreve muito bem a sua movimentação na água.

– E a jaguatirica?

– Bem lembrado. Vem de jaguar, um outro felino, que vem de yagoara, “tigre, onça, grande felino”.

– Tigre aqui no Brasil, Vô? Tá tentando me enganar, é? Essa não!

– Por muito tempo os desbravadores europeus chamaram os felinos maiores de “tigre”. Cheguei a conhecer gente do interior que chamava a onça de “tigre”.

– Puxa… – disse eu, com um ar muito espantado – o senhor está muito bem conservado, Vô!

Ele fez menção de pegar a arma de novo e eu me encolhi, rindo.

– Mais uma dessas e não lhe ofereço mais pipoca quando fizer. Esta palavra vem de pira, “pele”, e pok, “estourar, arrebentar”. É exatamente o que os grãos de milho de pipoca têm o hábito de fazer quando aquecidos: estouram e viram a casca do avesso.

Aliás, existe em nosso idioma o verbo pocar, vindo exatamente de pok, querendo dizer “bater, estourar”.

Falando ainda em plantas, comestíveis ou não, temos a mandioca, que se chamava mandi′oka em Tupi, querendo dizer “raiz da planta mandi′iwa“, que era o nome da planta inteira. O nome mandi′wi acabou gerando o nosso amendoim.

A nossa bonita taquara vem de ta′kwara, “cana oca”, derivado de kwara, “cova, buraco”. O capim que você come no lanche…

– Nada disso, Vô, eu não como capim!

– Era só para ver se você estava prestando atenção. Como eu dizia, capim vem de ka′a, “mato, plantas”, mais pi′i, “delgado, fino”. Em alguns lugares do Brasil se usa a palavra capiau com o sentido de “mal-preparado, com pouca educação”, pois essa palavra era originalmente aplicada aos roceiros.

E nunca se esqueça que dentro do capim alto pode ocultar-se uma cobra venenosa como a jararaca, que vem de yara′raka, “o que agarra e envenena”.

– É por isso que no outro dia a Vó disse que uma antiga namorada sua era uma…

– Pssiu, rapaz, quieto, não arranje confusão! Ela tem uma memória boa demais! E ainda por cima é especialmente criativa para se lembrar das coisas.

Olhe aqui, vamos pensar noutra palavra: pindaíba, por exemplo. Estar na pindaíba é “estar sem recursos, estar na miséria”. Deriva do nome de uma planta que era usada para fazer varas de pesca, a pinda′iwa, formada por pi′nda, “anzol”, mais iwa, “haste”. A razão exata dessa associação de sentidos não é bem clara; dizem uns que viria do fato de que, quando a pessoa está reduzida a viver só do que consegue pescar, é porque está feio o seu lado financeiro.

Pode-se dizer, num caso assim, que “o dinheiro do fulano foi prá cucuia”, de kukuî, “ficar caindo, soltando-se, perdendo pedaços”, reduplicação de kuî, “soltar-se, decair”.

E quando uma pessoa é só de conversa fiada e não faz nada do que defende, a gente diz que ela “está de nhé-nhé-nhém“.

– O senhor vai me dizer que isso não é… como é mesmo? Orno… ornitorrinco… enésimo…

Onomatopaico, seu esquecido, uma palavra feita a partir de um som. Era isso?

– Exato, Vô!

– Por incrível que pareça, isto não é imitação de um som, vem do Tupi ixe enhe′eng, “eu falo”.

Já que estamos falando demais, vá ver na cozinha o que você pode nos trazer para um lanchezinho. E não fale em jararaca por lá, senão você vai se ver com o meu tacape.

Resposta:

No Jardim

Era verão e minha avó tinha feito aquele suco de uva fantástico, saboroso, espesso. Eu, com meus doze anos, e meu avô, com seus conhecimentos, pegamos copos enormes cheios daquela maravilha gelada e fomos sentar no pátio à sombra, sentindo um vento amável que prenunciava uma daquelas chuvas rápidas da estação.

Ernesto, o enorme gato, nos acompanhou e ficou esperando que brincássemos com ele. Comecei a atirar-lhe casquinhas e pedrinhas. Ele passou a exibir suas capacidades atléticas, pulando alto para as pegar.

Em breve ficou cansado – ou envergonhado de tanta criancice, que gatos têm um elevado senso de dignidade – e se deitou junto aos nossos pés para fazer uma cuidadosa higiene.

– É bom aqui, Vô, com tantas plantas e flores. É o paraíso seu e da Vó, né?

– Você está mais perto do que pensa com essa afirmação. Já ouviu falar no Jardim do Éden?

– Era o nome do Paraíso da Bíblia, não era?

– Exato. E esse nome vem do Latim paradisus, do Grego paradisos, “parque, jardim cercado”, de uma fonte iraniana pairidaeza, “local cercado, parque”, de pairi, “ao redor”, mais diz, “fazer, formar”.

Na época em que estava sendo escrito o Velho Testamento já havia o hábito de se fazer jardins cercados, muito bem cuidados, na Mesopotâmia, o que certamente influenciou os escritores dos textos bíblicos.

– Isso o paraíso; e jardim, de onde vem?

– Do Frâncico gardo, “cercado”. Parece que desde muito cedo era melhor as pessoas terem cuidados para as plantas não serem roubadas. Aliás, essa palavra também originou o garden do Inglês.

– E as flores?

– A palavra flor vem do Latim flos, “flor”, de uma fonte Indo-Européia bhlo-, “brotar, florescer”. Existe uma palavra usada em Literatura que é relacionada e poucos desconfiam: antologia.

– Já sei: é o estudo das antas, ou seja, pessoas que se metem a escrever sem saber nada. Acertei, Vô? – aproveitei a ocasião para o provocar. Gostava de ver a sua reação.

– Não. A única anta que vejo por aqui é um certo neto metido a gracioso. E, como tal, tem que parar de tomar este suco gostoso e ir beber de quatro num rio lamacento.

– Tá bom, Vô. Deixe que eu fique com o suco e fale na antologia, então.

– Em Grego, anthologia era “coleção de flores”, de anthos, “flor”, mais logos, de legein, “colher, juntar”. Era o nome dado a um conjunto de versos e pequenos poemas de diversos autores.

– Foi enquanto Adão e Eva estavam no Jardim do Éden que todas as flores receberam os seus nomes, como me disse a nossa vizinha, Dona Aída?

– Ela tem muita fé, mas isso não torna verdadeiras certas afirmações. Os romanos diziam facile credere quam volemus, “é fácil acreditar no que queremos”.

As flores foram ganhando seus nomes aos poucos, à medida que iam sendo descobertas. Por exemplo, a hortênsia ali, vem do Latim hortus, “jardim, horto, plantação”.

Logo ali temos o crisântemo, a “flor de ouro”, que vem de chrysos, “ouro” em Grego e anthemon, “flor”.

Há o amaranto, do Latim amarantus, do Grego amarantos, de a-, partícula negativa, mais marainein, “morrer”. Literalmente, era a “sempre-viva”, a flor que não morria. Por isso, tinha um bom uso em Poesia.

– Minha mãe gosta muito de gardênias. Tá na cara que esse nome vem do lugar onde elas são plantadas, o garden, na Inglaterra, certo?

– Errado, seu etimologista chutador. Eis mais um caso de parece-mas-não-é. O nome é devido a um naturalista que aconteceu de se chamar de Alexander Garden. Portanto, vem de um sobrenome, mas não do lugar onde cresce.

– Droga.

– É bom ser humilde por ora. Um dia você vai chegar onde eu estou e não vai mais precisar disso – disse o velho com a cara mais séria do mundo – e continuou:

– Há aquela flor muito comum na Holanda, a tulipa. Seu nome vem do Turco tülbent, “turbante”, do Persa dulband, com o mesmo significado. Isso porque ela lhes lembrava essa cobertura para a cabeça tão usada no Oriente.

Existe também a anêmona, do Grego anemone, “flor do vento”, mais exatamente “filha do vento”, de anemos, “vento”, mais -one, terminação de nomes femininos.

– E a grama, Vô? Muito discuti com meus amigos sobre a grama e o grama. Como é isso?

A grama, que é verde e cresce no chão vem do Latim gramen, “relva, gramíneas em geral”, do Indo-Europeu gre-, “o que cresce”. Esse é um substantivo feminino e o artigo que lhe corresponde é a.

O grama, que é uma unidade de massa do sistema métrico decimal vem de outra fonte, o Grego gramma, “sinal escrito, marca”, relacionado com graphein, “escrever”, originalmente “sulcar, marcar arranhando” . Passou a ser o nome de uma unidade de medida porque no Latim havia uma palavra derivada, o gramma, usado como unidade de massa.

– Meu amigo Gilberto diz que, se termina com “A”, é feminino.

– Então diga para ele enviar uma telegrama com muitas fonemas ou dar uma telefonema ou fazer umas poemas para o governo, para ver se consegue mudar isso! Cabeça simplista!

Percebi que ele se irritava com aquele tipo de teimosia. Mudei de assunto:

– E o capim?

Esse nome tem origem em nosso país mesmo. Vem do Tupi ka′a, “erva, planta”, mais pii, “fino, estreito”.

– Vô, e porque a parte de baixo do pé se chama planta? Pegou esse nome porque quem anda descalço pisa nas plantas com ela?

– Antes o contrário. Por incrível que pareça, o nome dessa parte do corpo é que passou para os vegetais. Tudo indica que veio do Latim plantare, “enterrar, empurrar contra o chão com o pé”, de planta, “sola do pé”. Depois passou a significar, ainda em Latim, “broto, rebento, enxerto”. O seu uso para “vegetais fixos no solo” é estranhamente recente; tem pouco mais de 500 anos.

– Puxa! E esse broto de que você falou?

– Vem do antigo Germânico spreutanan, do Indo-Europeu spre-, “espalhar, dispersar”, passando pelo Grego speirein, “espalhar”. Quando eu tinha a sua idade, chamávamos as moças de brotos. Pena que agora não se usa mais, pois era muito expressivo.

– Se eu chamar uma moça de broto

– Já sei, você vai levar um corridão. Não tente, use as palavras de agora.

– E a raiz? O senhor sempre fala em raízes das palavras…

– Porque radix em Latim significava “base, fundamento”. Uma raiz é o fundamento por onde a árvore se fixa ao solo, a raiz de uma palavra é a base de onde ela evoluiu, a raiz quadrada ou cúbica de um número é a base de onde ele surgiu, depois de determinadas operações.

– E, para tudo isso crescer, é necessária muita água – disse eu, ao ver a mangueira enrolada ali perto.

– É. Temos que usar muito a mangueira. O nome deste objeto vem de uma parte da roupa, a manga, devido à forma e à função. E manga vem do Latim manica, derivado de manus, “mão”.

É preciso regar frequentemente. Esta palavra vem do Latim regare, “molhar, derramar”. Para uma pessoa crescer e ser algo que preste, ela há de ser regada com bons exemplos e muito estudo, sabia? – e me olhou por cima dos óculos com ar feroz. Pulei para outro assunto:

– E o adubo?

– Este vem do Frâncico dubban, “armar um soldado para a guerra”. Seu sentido evoluiu para “preparar, deixar apto, adequado”, que é o que se faz com a terra quando se colocam nela certos compostos químicos necessários ao crescimento das plantas. Para crescer bem, uma pessoa precisa ser adubada também, sabia? – e repetiu o olhar. Em gente, este adubo tanto é feito de carinho, como um suco feito especialmente para um neto, como por exigências de estudo.

Mas agora vá correr pelo pátio com esse gato, que estou com a boca seca de tanto falar. E aproveite para me trazer mais um copo de suco.

Resposta:

Origem Da Palavra