Palavra frecha

Sururu na Festa!

Noite. Um bairro perdido e abandonado pela Prefeitura da cidade. Ruas sujas, esburacadas, janelas quebradas, prédios caindo aos pedaços.

O som de música indica que alguma festividade está ocorrendo aqui perto. Vamos ver… Ora, é ali no Clube Cultoral, o nome abreviado do Clube Ultrapassador de Toda a Ralé, primeiro e único daquele democrático bairro. Se alguém tentar abrir outro, seus sócios arrebentam tudo.

Na fachada descascada há um cartaz que diz:

GRANDIOZA FESTA!

REPRÍ DO REVELHÃO!

NÃO PERDA!

SE ENTRAR SEM PAGAR APANHA.

O réveillon já passou há tempo, mas o pessoal da diretoria do Clube resolveu arranjar um motivo para dar festa, que era coisa que trazia lucro aos cofres do clube e, por distração, ao bolso do tesoureiro.

Aproxima-se do Cultoral um estranho personagem, que veste uma gabardine enorme cor de areia, com um chapéu marrom bem enfiado cabeça abaixo. Não dá para ver nada dele, exceto as pontas dos dedos. Ele sempre usa essa roupa, para não chamar a atenção.

Trata-se do detetive X-8, Defensor das Palavras, Pesquisador de Origens Credenciado, Etimologista de Mão Cheia e uma série de outros títulos que ele conferiu a si mesmo. Mas com toda a honestidade.

Intrépido como sempre, ele se aproxima do lugar.

O que poderá acontecer com alguém assim numa reunião de pessoas e palavras tão mal-encaradas? O nível ali é de pagode para baixo; ninguém usa os plurais direito; todos falam muito alto, jogam papel de bala nas calçadas e coçam o que não deviam em público.

Momento tenso em nossa história. Sem hesitar, o detetive se aproxima do grupo que está vadiando junto à porta do Clube. Um dos malandros o vê e cutuca o mais próximo; o grupo olha para o recém-chegado em silêncio.

Ele chega junto deles e os encara. Pelo menos parece, que o chapéu não nos permite ver direito.

E então todos lhe estendem as mãos, cumprimentam-no, dão-lhe tapas nas costas, fazem-no entrar e sentar-se, arranjam uma lata estupidamente gelada (de refrigerante, claro, pois ele não bebe) e se regozijam com a sua presença.

Aquele pessoal, tão desprovido intelectualmente, se sente honrado ao receber a visita do único intelectual do bairro, um sujeito que havia lido não só um livro inteiro, mas vários.

É como um sinal de que a intelligentsia é parceira deles. Sentem-se finos. Começam a segurar os copos descartáveis de cerveja erguendo o dedinho, a expelir a fumaça dos cigarros com a boca torta para que ela não vá direto para o rosto do interlocutor, a evitar arrotos e outras barbaridades – essas coisas chiques, enfim.

Para X-8, que ganha bem a vida fazendo laudos sobre a origem das palavras que o consultam, é interessante comparecer a lugares onde se reúnem gente e palavras. Ele sabe da importância do marketing.

Por isso ele se esforça para agüentar a confusão, o barulho, a fumaça, a música, a vulgaridade, já que é uma maneira de se tornar conhecido e angariar clientes.

Com a sua chegada, parece que a festa se anima; diversas moças da mais fina sociedade local, todas gordas e com roupas justíssimas para ficarem mais sexy, se apresentam cantando canções difíceis de reconhecer. Mas letra e melodia são pormenores sem importância, o que conta é o espírito de camaradagem, alegria, companheirismo…

Como para nos desmentir, no meio do salão começa a rolar uma grossa briga. Há algumas palavras, divididas em duplas, que se xingam, puxam-se pelos cabelos, dão-se pontapés e rasteiras. Outras palavras e pessoas tentam apartá-las, mas são repelidas.

Todos se viram para X-8. É o seu grande momento.

Ele se ergue, dirige-se para o local da luta. Pára junto a uma mesa e puxa de dentro do bolso da gabardine uma borracha enorme. É daquelas antigas, azul de um lado e vermelho-tijolo de outro, que serviam para apagar tanto lápis como tinta de caneta. E que colhiam a ocasião para arrancar um bocado do papel também.

O corajoso profissional bate com ela fortemente na mesa. Na terceira pancada, as palavras estão imóveis, olhando-o atemorizadas.

Se há uma coisa que uma palavra teme é uma boa borracha. Ainda mais se ela está ameaçadoramente gasta, como é o caso.

– Venham todas para cá. Sentem-se em roda e vamos ver a razão dessa briga – a ordem de X-8 não admite hesitação.

Depois de se sentarem nas cadeiras de plástico branco, elas começam a falar todas ao mesmo tempo, apontando umas às outras.

X-8, frio, diz:

– Paradas! Eu vou escolher quem fala. Vocês duas aí, que estavam arrancando os cabelos uma da outra, manifestem-se.

As palavras pareciam quase gêmeas; eram mesinha e mezinha. Começaram a reclamar acusando-se mutuamente de ignorantes, imitadoras, falsárias, grossas, incultas, bruacas, mocréias, barangas, etc., dizendo que não podiam permitir uma coisa dessas, que aquilo ofendia profundamente as suas famílias…

– Calma, calma, pessoal. Aqui vocês estão muito enganadas. Ambas estão se apresentando corretamente e nenhuma tem a intenção de se passar pela outra.

Escutem: mesinha, que ninguém ignora o que seja, é o diminutivo de mesa, que deriva do Latim mensa. E mezinha, que quer dizer “remédio feito em casa” vem do Latim medicina, aqui com o sentido de “medicamento, remédio”.

Assim, vocês duas acabaram sendo parecidas meramente por convergência fonética, pois têm origens e sentidos completamente diferentes. Não há razão para brigas.

As duas palavras se entreolharam, encabuladas, e se apertaram as mãos pedindo desculpas.

X-8 se virou para outro par de briguentas, flecha e frecha.

– É uma vergonha que você duas briguem entre si. Vocês são exatamente a mesma palavra, derivada do Frâncico fliukk, aparentada com o Alemão fliegen, “voar”, já que é isso que o projétil do arco faz a caminho do alvo.

“Frecha” é simplesmente uma forma antiga, ainda perfeitamente correta em Português, embora só os letrados saibam.

Nesse ponto, X-8, com o seu conhecimento de psicologia das palavras, percebeu que uma delas estava começando a desprezar a outra por velha e que esta ia debochar da infantilidade da outra. Ele prosseguiu:

– Vocês formam uma dupla de grande potencial. Frecha pode passar sua enorme experiência a flecha, que trará novas idéias e arrojo à outra. Vocês deveriam se conhecer melhor.

Com esse argumento, as duas palavras começaram a se encarar com evidente simpatia. O detetive se voltou então para abantesma e avantesma.

– Vocês são palavras raras atualmente. Poucas pessoas sabem que vocês significam “espírito que assombra, fantasma”. E o caso de vocês é o mesmo das duas anteriores.

Ambas estão corretas; derivam do Grego phántasma, “espectro, ser imaginário”, derivado de phainein, “brilhar, iluminar”, derivado de phos, “luz”. Ou seja, trata-se apenas de uma imagem, algo incorpóreo como a luz.

Abantesma é a forma mais antiga, mas de uso ainda correto. Recomendo também que vocês trabalhem juntas, como as duas anteriores.

Sem perder tempo, voltou-se para incipiente e insipiente.

Incipiente, você quer dizer “aquilo que está no início” e vem do Latim incipere, “iniciar, dar começo”, composto por in-, “em”, mais capere, “pegar, tomar, agarrar”.

Por sua vez, insipiente, palavra pouco conhecida em geral, quer dizer “aquele que não sabe, ignorante”. Deriva também do Latim, de in-, aqui com sentido de negação, mais sapere, “saber”. É mais um caso de origens e sentidos diferentes que não justifica uma briga.

As duas estavam de olhos baixos, cada qual começando a se sentir mais insipiente.

Para retomar o ritmo de festa e de venda de bebidas, Fininho, o administrador estranhamente parecido com um rato em estado terminal de anemia, colocou um CD bem agitado no aparelho que ele tinha comprado de ocasião de um amigo que estava se desfazendo de vários deles.

Pessoas e palavras, aliviadas pelo fim da briga, voltaram às suas danças, cantos e copos.

Muitas se aproximaram de X-8 para o cumprimentar pela presteza de espírito e cultura.

Ele se mostrou devidamente modesto. Puxou de um grosso maço de cartões de visita que por pura casualidade estava consigo e o distribuiu entre os que estavam a seu alcance.

Saiu da festa com o espírito leve, contente por ter contribuído para evitar aquela briga e mais contente ainda por ter feito uma bela propaganda dos seus serviços.

Resposta:

Armas Antigas

Certa vez, quando eu estava com uns doze anos, contei para o meu avô, em seu gabinete confortável e cheio de livros:

– Sabe, Vô, que no outro dia eu tinha lido umas coisas sobre as guerras da Idade Média e comecei a pensar que, se eu vivesse naquela época, poderia ter inventado algumas armas.

– E o que foi que você bolou? – disse o velhote.

– Pois comecei a pensar em alguma coisa que fosse pesada, que tivesse uma ponta… Ia precisar ter uma parte cortante, uma defesa para a mão de quem usa… E acabei inventando a espada!

O velho riu:

– Coisas assim já me aconteceram. Eu poderia ser rico, por exemplo, se outra pessoa não tivesse inventado o serrote muito antes de mim!

Mas, já que você puxou o assunto “armas antigas”, posso lhe contar umas coisas sobre os nomes delas.

Fiquei contente:

– Oba! Comece pela espada, Vô.

– Claro, quando se trata de lidar com armas, eles se interessam; se fosse para aprender Matemática você não estaria assim tão faceiro. Mas vamos lá, que eu também fui desse jeito.

Espada vem do Grego spathé, “peça achatada de madeira usada pelos tecelões, pá do remo”. Como vê, a palavra começou a vida descrevendo objetos menos destrutivos. Devido ao formato, acabou aplicada ao instrumento de guerra.

Mas esse vocábulo grego também originou, por exemplo, espátula, “objeto achatado usado em artes”, espáduas, “costas, dorso de uma pessoa”, o espaldar da cadeira onde a gente apóia as ditas cujas.

Os romanos usavam uma espada curta, o gládio, cujo nome parece vir do Gaulês kladyos, do Indo-Europeu qelad-, “bater, golpear”.

– Daí os gladiadores?

– Isso mesmo. E também o gladíolo, uma flor, devido ao formato das folhas.

– E a lança, Vô?

– Essa vem do Latim lancea, “lança leve de arremesso”, palavra de origem celtibérica. Desse nome derivou o verbo lançar, que no começo se referia apenas ao atirar da lança e depois passou a designar o arremesso de qualquer coisa, desde pedras até desaforos, tomates e ovos podres.

Esta arma tem diversas variantes, cada uma com seu nome. Os romanos usavam a hasta, que corresponde mais à imagem comum da lança, e o pilum, especial para se cravar no escudo do inimigo para o obrigar a largá-lo, deixando-o desprotegido.

Havia também o venábulo, uma lança curta muito usada para a caça, de onde tirou o nome, pois venare em Latim queria dizer “caçar”. E também outra lança curta, o dardo, que veio do Germânico darothuz, “lança”.

– Mas há outras coisas mais curtas que se chamam dardo, não é?

– Sim. Há aqueles que os ingleses atiram num alvo enquanto bebem cerveja morna nos seus pubs. Há os que são usados com tranqüilizantes para sedar animais. Às vezes, quando estamos incomodados, nosso olhos dardejam também, sabia?

Eu sabia. Já tinha visto uma vez aquele fogo gelado nos olhos do velho e não queria ver de novo. Puxei rápido outra pergunta:

– E o arco e a flecha, Vô?

– O arco tem origem meio complicada: veio do Latim arcere, “conter, repelir, afastar, guardar”, que originou também a arca onde antigamente a gente guardava os tesouros, e as arcadas dos prédios clássicos, por exemplo. Aplicou-se a analogia destes objetos curvos ao instrumento de arremesso de flechas.

E estas têm o seu nome originado no Frâncico fliukka, “flecha”, ligado ao verbo germânico fliegen, “voar”.

Elas podem ser chamadas também de setas, do Latim sagitta, “flecha”.

– E o que isso tem com o tal signo do Sagitário?

– Tem que essa constelação representa um centauro atirando com arco e flecha, daí o nome dela.

– Hum. Uma vez vi escrito frecha num dos seus livros antigos. Que erro, hein?

– Nenhum erro. Frecha é uma forma antiga mas ainda é Português correto, embora quase não se use em nosso país.

– E aquela espécie de arco com coronha?

– Ah, a besta, uma arma que lançava projéteis mais curtos que as flechas comuns e com energia bem maior. Havia uma grande discussão entre os seus partidários, que destacavam o grande alcance dela, e os do arco e flecha, que podiam disparar com muito mais velocidade.

Pronuncia-se bésta, preste atenção, com “É” aberto. Não tem nada a ver com besta com “Ê” fechado, que vem de bestia, “animal”.

O nome da arma deriva do Latim balista, uma arma pesada para arremessar dardos. Pode-se dizer também balesta ou balestra.

Mas, voltando às armas de combate próximo, temos o machado, que parece vir do Latim marculatus, derivado de marcus, “martelo”. E o que você me diz da francisca?

– Faz tempo que a gente não sabe da nossa vizinha, desde que ela fugiu com o pastor da igreja dela…

O velho riu muito:

– Peguei! Francisca é o nome do machado de duas lâminas que os godos gostavam muito de usar no pescoço alheio. O nome mais usado é franquisque, mas o outro está certo. Vem da palavra latina franciscus, “Frâncico”, um povo germânico que fazia das suas pela Gália.

– Essa eu não conhecia mesmo. Mas e quanto àquela coisa com uma bola e pontas de ferro…

– A maça. O nome vem do Latim mattea, derivado de matteola, “malho, martelo grande”. Era uma arma extremamente destruidora, mas precisava ser manejada por uma pessoa muito forte. Podia ter as pontas instaladas na extremidade rombuda ou ter uma bola espinhuda presa ao cabo por uma corrente.

– Não parece muito esperto isto da corrente, Vô. Fica mais difícil para usar. Qual era a vantagem?

– A vantagem era que a bola podia ser girada e passar por cima do escudo do desafeto para acertar a cabeça dele por trás. Acha pouco?

– Tá bom, Vô. Antigamente eles eram mais espertos do que eu pensava.

– Não se esqueça disso na hora de avaliar a minha inteligência. Mas você já ouviu falar de um cavaleiro de lança em riste?

– Já li alguma frase assim. Não quer dizer “com a lança levantada”?

– Atualmente quer dizer com qualquer coisa levantada, mas originalmente riste era uma peça da armadura peitoral que servia para apoiar o cabo da lança ao erguê-la para acometer o inimigo. Vem do Catalão rest, que era o nome desta peça.

E já que falamos em capacete, sua origem é discutida. O que parece se aproximar mais da verdade é que venha do Espanhol capacete, “peça de proteção para a cabeça”, do Latim capaceum, derivada de capere, “conter”.

Podemos falar também em armadura. Essa palavra vem do Latim arma, originalmente ligado a “armas de defesa, peças para evitar ferimentos no soldado”.

Ela pode ser chamada às vezes de couraça, do Latim corium, “couro”.

– Não me diga que se faziam armaduras de couro, Vô! Essa não!

– Faziam, com couro grosso fervido e elas serviam muito bem, sendo mais leves que as outras.

Mas quem fala em armadura logo se lembra de escudo, que vem do Latim scutum, “escudo”.

Falei no capacete e me esqueci que, nas armaduras antigas, se falava mais em elmo, do Frâncico helm, do Germânico antigo khelmaz, “cobrir, esconder”.

Logo abaixo da proteção para a cabeça vinha, na armadura de placas, uma peça chamada >gorgueira, para proteger o pescoço, do Latim gurguis, “garganta”.

Isso me lembra que a palavra usada para designar a peça que protegia as coxas é coxote, do Francês cuissot, que vem de cuisse, “coxa”, que era coxa no Latim. Em Catalão, essa peça se chamava cuixot, passando a quijote em Espanhol.

– Ué, Vô, esse não é o nome do…?

– Exatamente: Dom Quixote, “El Caballero de la Triste Figura”, da obra de Cervantes.

– Não entendi essa confusão do nome dele com uma peça de armadura.

– O nome dele na história era Alonso Quijano. Por semelhança com o sobrenome, ele teria escolhido como nome de guerra a palavra que designava essa peça. Em Espanhol da época, escrevia-se Quixote, com “X”, e se pronunciava com o som do nosso “CH”.

– Puxa, Vô, como a gente aprende coisas quando se põe a estudar as origens das palavras!

– É isso mesmo, rapaz. Mas a gente tem que estudar direitinho, para não acabar inventando origens, assim como você estava querendo inventar armas. Da próxima vez a gente fala mais. Até logo.

Resposta:

Origem Da Palavra