OFÍDIOS ASSUSTAM X-8
O incomparável detetive das palavras, X-8, está esperando o grupo de clientes que marcou hora esta noite.
Dá para notar que ele está nervoso, agitado, um suor frio porejando da testa. Bem, na verdade não dá para notar que ele está agitado porque sua capa é tão grande que oculta de todo o seu corpo. Tampouco se vê o suor porque ele usa o chapéu desabado sobre a testa, com o fito de parecer mais misterioso. Está certo, só sabe do estado dele quem escreve estas linhas e seus queridos leitores.
Epa, agora ele pulou em sua cadeira. É que ouviu um som sibilante e rastejante se aproximando da porta de seu escritório.
Ela se abre e não se enxerga ninguém do outro lado. Erguendo-se um pouco em sua cadeira por trás da escrivaninha, ele confirma o que esperava: não há ninguém em pé ali. Isso porque há um conjunto de palavras que deslizam rente ao chão e se espalham para se acomodarem nos bancos da sala.
Ele resmunga entre dentes contra si mesmo, por ter aceito esse grupo para explicar sua origem. Mas sabe que não teria resistido ao bom dinheiro que elas pagaram adiantadamente.
Trata-se aqui de palavras relacionadas ao significado de ofídio.
X-8 fala rapidamente, para se livrar dessas presenças que lhe despertam um medo primordial:
– Sejam todas bem-vindas; vamos começar de imediato porque fui chamado por uma questão de segurança nacional e preciso tomar o avião que a Força Aérea mandou para me buscar em pouco tempo. Não, não procurem nada nos jornais sobre o assunto amanhã, isso vai muito além do que a imprensa mundial pode pensar em publicar.
De qualquer forma, saibam minha prezadas clientes que representam, em numerosas mitologias, qualidades positivas tais como sabedoria, vigilância, fertilidade e renascimento.
As palavras ficaram visivelmente satisfeitas. Já mais tranquilo, o detetive continuou:
– Começaremos por ofídio: você deriva do Grego ophis, “cobra, serpente”, mais o sufixo diminutivo –idion.
E seguiremos por serpente, ali ao lado: sua origem é o Latim serpens, particípio presente de serpere, “rastejar”, do Sânscrito sarpati, “ele rasteja”. Esta palavra originou o Grego herpein, “rastejar”, que é usado na designação de uma doença viral, o herpes-zóster, assim chamada porque apresenta lesões de pele que se espalham como se rastejassem em determinado trajeto do paciente.
Todas aqui representam animais que se enquadram na classe dos répteis, palavra que vem do Latim reptilis, “o que desliza ou rasteja”, de repere, “rastejar”, provavelmente aparentada com serpere.
Ao falar nessa classe, em geral o primeiro nome que vem à mente de todos é cobra; esta vem do Latim colubra, “cobra, serpente”. Na Idade Média, um canhão de pequeno tamanho foi chamado de colubrina, aparentemente por ser mais fino em relação à largura que os outros.
A gente vê um erro comum em traduções de filmes americanos: a naja, de cuja origem falaremos em seguida, é por eles chamada de cobra. Isso porque eles usaram o nome português de “cobra-capelo” ou “cobra de capelo” por causa das dilatações que ela tem logo abaixo da cabeça e que lembrava um capelo, ou seja, um capuz. Então, para eles, cobra é especificamente o que chamamos de naja; para nós, é um nome genérico.
E víbora é do Latim viper, “cobra”, uma alteração de vivipera, “vivípara”, ou seja, “a que dá à luz filhos vivos, fora do ovo”. Mas nem todas fazem assim, muitas dão à luz seus lindos filhotinhos com a intermediação de ovos.
Um adjetivo derivado dela é viperino, usado para se referir a uma pessoa que apresenta qualidades especiais para falar mal dos outros.
Bem, até aqui citamos as palavras que têm significados mais abrangentes. Falaremos agora em nomes mais específicos que designam as clientes que hoje nos honram com sua presença.
Por exemplo, naja, que vem do Hindustani naga, “serpente”.
Ao lado dela, vemos cascavel. Ela vem do Provençal cascavel, do Latim cascabus, variante popular de caccabus, que designava o envoltório de certas sementes (ainda hoje em nosso idioma, sob a forma “cascabulho”, relacionado a “casca”). Seu significado inicial é o de “guiso, chocalho” e se aplicou a esse ofídio devido às excrescências ósseas da extremidade da cauda, que amavelmente fazem um ruído para avisar e afugentar os inimigos. Em Inglês ela é chamada de rattlesnake, “cobra de chocalho”.
A palavra sacudiu seus guizos, o que assustou o detetive. Como estas clientes não se destacavam pela expressividade facial, ele não sabia se era uma manifestação bem-humorada ou o contrário.
Ele prosseguiu, rápido:
– Quase caindo do banco de tão grande, lá no fundo, vemos jiboia, do Tupi yi’mboia. Outro nome dela é boa, que nada tem a ver com o feminino de “bom”. Esta vem do Latim boa, “cobra d’agua”. Existe uma peça de vestuário feminino que é o boá, palavra francesa que veio exatamente desta latina. Um boá lembra, pela forma, uma grande serpente de plumas enrolada no pescoço de uma pessoa.
E ao seu lado está sucuri, do Tupi su’kuri, “a que morde rápido”.
Ali vemos outro nome que se presta a confusão nos filmes: anaconda. Ela na verdade é um sinônimo de jiboia, derivado do Singalês henakandaya, “espécie de cobra”.
Já píton vem do Grego python, o nome usado por um grande dragão que guardava a fenda do solo por onde brotavam vapores que permitiam adivinhar o futuro. Ela foi morta por Apolo.
Vejo que todas ficaram curiosas com essa história do dragão. O que ocorre é que, em épocas antigas se usava o nome de “dragão” também para serpentes.
Olhando-nos fixamente se encontra, aqui no canto, jararaca, do Tupi ya’raraka, “cobra venenosa”.
E sentada ao seu lado está a cruzeira, assim chamada por ostentar lindas cruzes (na verdade, mais lembram a letra “X”) em sua pele.
E, para terminar, cito a coral, do Latim corallium, do Grego korallion, “avermelhado, da cor do coral”, do Hebraico goral, “seixo pequeno”, originalmente referindo-se apenas a um tipo de pedra avermelhada encontrada no Mediterrâneo.
Senhoras clientes, tendo esgotado as origens de cada uma das presentes, ofereço minhas despedidas e informo que podem sair sem temor; mesmo neste nosso bairro é pouco provável que alguém se meta com um grupo tão distinto.
Gostaria de prolongar nosso papo tão agradável, mas sabem como é; quando o dever chama, um detetive etimológico tem que atender.
As clientes saíram coleando.
Assim que a porta se fechou, X-8 tirou o chapéu e começou a se abanar, prometendo a si mesmo selecionar mais os grupos que recebia.