TRADUÇÕES MALFEITAS [Edição 66]
Entrei no gabinete do meu avô e vi que ele bufava de raiva.
– Epa, o que foi, meu caro antepassado, que o senhor está tão furioso?
– Houve, meu caro descendente de uma geração perdida para o intelecto, que encontrei umas anotações de frases que vi escritas ou ouvi pela TV e estou exercendo o sagrado direito de me indignar até a embriaguez por uma reação alérgica à besteira, à preguiça e à ignorância que ora reinam em nosso idioma!
– Ih, Vô, acalme-se e me conte mais – disse eu, tratando de me acomodar, pois sabia que era hora de aprender.
O velho cavalheiro pegou uma folha de papel embolada do chão, desamassou-a e olhou:
– Por exemplo, determinado filme proclamava que certo povo antigo tinha sido totalmente dizimado pelos romanos.
Ora, dizimar vem do Latim decimare, “remover ou destruir um décimo”, de decem, “dez”. Era um castigo muitas vezes aplicado a cidades rebeldes ou a unidades do exército que não atendiam direito às ordens dos oficiais.
– E como se fazia, Vô?
– Fazia-se um sorteio e, a cada dez pessoas, uma era escolhida para morrer.
– Puxa, que radicais!
– Outros tempos, meu filho. Ainda não haviam resolvido que a impunidade reinaria. Mas, enfim, o que sei é que agora se usa a palavra dizimar com o sentido de “destruir tudo”.
– Nossa vizinha do lado, D. Elvira, que é muito religiosa, uma vez estava falando sobre um tal de dízimo, mas não creio que estivesse falando em mortes.
– Eis outro exemplo com a mesma origem. Dízimo era o nome de uma contribuição que os fiéis deviam entregar à Igreja. Inicialmente eles pagavam um décimo do que ganhavam por mês, mas depois eles ficaram livres para pagar o que podiam.
Passando para outro motivo de minha indignação…
– Um momento, Vô! E essa palavra, de onde veio?
– Ela deriva do Latim indignari, “estar irritado ou desagradado com alguém, considerar uma pessoa como sem valor”, de in-, negativo, mais dignus, “de valor, apropriado, adequado”. Logo, quando manifesto estar incomodado com certas manifestações da falta de cultura, estou querendo torcer algum pescoço.
– Mas não o meu, né?
– Por enquanto eu o manterei no lugar, com tal que você evite besteiras.
– Certo. Mas o senhor ia começar a esbravejar contra o que mesmo?
– Ah, sim. Agora era contra mais uma tradução besta que a gente vê nas dublagens e legendas de filmes em Inglês: sucker, “sugador”, da palavra arcaica sucan, de origem onomatopaica.
– Ei, isso eu conheço. Quer dizer “trouxa” ou algo assim, né?
– Exatamente. Sua origem é interessante. Esse é o nome usado para o bagre e outros peixes do gênero.
– Um peixe, Vô? Como é isso?
– Pois veja só, esses bichos se alimentam de pequenos animais que vivem no fundo das águas. É por isso que eles têm aquelas bocas grandes, para poderem engolir suas refeições.
E parece que eles são meio ingênuos; dizem que eles podem ser apanhados com certa facilidade. Daí que, lá por 1750, começaram a chamar uma pessoa com pouco preparo para as situações de vida de sucker.
E vai daí que, no outro dia, vi um filme legendado em que um vigarista prometia que ia trazer “uma porção de bagres” para outro. E ele não falava de pescarias, era de gente mesmo!
– Uma vez o senhor estava resmungando contra umas fitas vermelhas, como era isso?
– É, trata-se de mais uma besteira de tradutores despreparados. Em Inglês existe a expressão red tape, literalmente “fita vermelha”, usada como sinônimo de “burocracia”. Ela se referia ao uso antigo de unir folhas de processos legais com fitas vermelhas e também de colocar selos oficiais na extremidade delas. Um conjunto de folhas assim ligadas muitas vezes ostentava uma boa quantidade de fitas destas.
Aí, um dia, vejo uma famosa atriz num filme dublado dizendo, indignada, – “Chega de fita vermelha! Libertem nossos familiares”!
– Essa foi boa!
– E quando resolvem fazer confusão entre gaulês e galês, então?
– Ããh… O senhor se incomodaria em me ajudar a lembrar, Vô?
– “Lembrar”, sei. O que acontece é que gaulês vem do Latim gallus, “membro da tribo dos Galos, que habitavam boa parte da França” e que tiveram grandes confusões com os romanos.
E galês vem do anglo-saxão waelisc, “estrangeiro”. Mas, como o País de Gales, uma parte a sudoeste do Reino Unido, é pouco conhecido por aqui, os irresponsáveis fazem uma mixórdia terrível.
E mudando da terra para a água, noutro filme alguém explicou a outra pessoa que “Fulano está ali no surf“. O tradutor usou essa palavra, que não tinha nada a ver com o assunto, sem saber que o diálogo original se referia a surf no sentido de “arrebentação das ondas” e não no esportivo.
– E essa palavra foi inventada no Havaí?
– Não, ela provavelmente tem origem na Índia. O que me lembra outro filme que vi, ambientado lá, mostrando a época em que os soldados da Rainha Vitória mandavam no país. Tinha ocorrido uma revolta contra os dominadores europeus e um oficial do Exército estava contando a outro que eles tinham sofrido “Vinte e uma fatalidades”.
Ora, em Inglês fatality tem, desde o século XV, o sentido básico de “aquilo que causa morte”. Deriva do Latim fatalitas, de fatum, “predição, declaração profética”, literalmente “coisas ditas pelos deuses”, que veio de fari, “falar”.
Em nosso idioma predominou o sentido original, que não implica necessariamente em “morte”. Mas, na hora de se fazer a tradução, os mal-preparados irresponsáveis repassam o conteúdo do texto, sem ter ideia da besteira que estão fazendo.
Enfim, meu neto, vamos deixar tamanha indignação de lado. Tente aprender com isso: traduzir é assunto muito sério.