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Corrente

 

A banda termina de tocar o Hino Nacional. O estádio atopetado de gente e de palavras mantém um silêncio respeitoso quando a figura de gabardine clara, com o chapéu bem enterrado na cabeça de modo a lhe ocultar totalmente o rosto, sai de um dos vestiários e se dirige ao estrado erguido perto de uma extremidade do gramado.

O misterioso indivíduo se põe em impecável posição de sentido à frente das altas autoridades que o aguardam lado a lado. Ali estão o representante do Presidente, do Governador e do Prefeito, entre muitos outros.

Cada um faz uma breve alocução referindo-se aos feitos de X-8 – pois é ele o homenageado nesta cerimônia cívica.

Os discursos são curtos, tal como ele havia exigido antes de aceitar a homenagem. Não que ele não goste de ser elogiado, até pelo contrário, mas a idéia de ficar estaqueado ali por muito tempo não lhe agrada.

Findos os discursos, o Núncio Apostólico lhe coloca no peito a Comenda de São Cipriano e anuncia que a Biblioteca do Vaticano está aberta para as suas pesquisas sempre que lhe aprouver.

A seguir, o Ministro da Marinha o condecora com a Ordem da Banana-Boat, pelos bons serviços prestados às palavras náuticas e coloca ao seu dispor as belonaves da Marinha.

Agora vem o do Exército e lhe entrega a Medalha do Mérito do Borzeguim e diz que X-8 pode contar com o apoio das tropas de elite sempre que precisar de algum reforço na sua segurança pessoal.

O Ministro da Aeronáutica avança e prende na frente da gabardine recém-tirada da lavanderia a Grã-Cruz da Pandorga no grau de Cavaleiro, acrescentando que sempre haverá um helicópetro à sua disposição para quando ele quiser se deslocar para lugares de difícil acesso em suas missões.

O Núncio e os Ministros recuam, uniformes coloridos e vistosos, condecorações rebrilhando ao sol de outono. Em uníssono, as quatro espadas são retiradas das bainhas, e o punho é levado à altura dos lábios; a seguir, elas são erguidas, indo retas até o alto e depois elas se abatem para a frente e para a direita, em continência .

X-8, frustado por não poder fazer continência, já que não é militar, apenas levanta a mão direita e ergue o polegar com toda a galhardia que pode reunir.

Nesse momento, soam clarins no lado oposto do campo. Todos se viram para lá e o espanto toma conta do estádio. Um pequeno contingente de cavalaria, couraças peitorais ofuscantes, espadas na mão direita, apoiadas ao ombro, segue uma mulher de uniforme e digníssimo porte, sobre um cavalo com preciosos arreios. Esses uniformes não são deste país…

Só pode ser Ela, a Rainha! Logo atrás dela cavalga um oficial com uma caixa revestida de veludo. Só pode ser a condecoração que ela lhe traz. A Ordem da Jarreteira? Seria demais; ela é reservada quase só à Família Real. No Século 20, apenas duas pessoas de fora a receberam, uma delas sendo Winston Churchill.

Bem, a Order of the British Empire, Ordem do Império Britânico, também serve. Seria interessante poder colocar as iniciais O.B.E. depois do seu nome no cartão de visitas e explicar distraidamente de que se trata quando perguntado…

Mas o que é isso? Batidas fortes do lado de fora do estádio? Deve ser mais povo querendo entrar.

X-8 é generoso, especialmente quando isso não implica em gastar nada. Vira-se para as autoridades para pedir que abram os portões, quando nota que a comitiva a cavalo, mesmo não parando de andar para a frente, vai recuando e rapidamente some de vista. Os Ministros e o Núncio – pensando bem, o que fazia este com uma espada à cinta? – não estão mais ali, apenas as suas roupas, medalhas e espadas amontoadas no chão. A luz do dia está escurecendo. Um forte terremoto sacode tudo e atira X-8 ao chão.

A queda com cadeira e tudo acorda o detetive. Abrindo os olhos, ele vê ao seu redor o escritório cuidadosamente desleixado de sempre, meio escuro. Percebe que a porta está se abrindo e vê os pés de alguém que entra, certamente uma palavra cliente.

Esta vê a figura na gabardine amarfanhada no chão e se espanta:

– Que foi que houve? O senhor desmaiou?

X-8 se recusa a reconhecer que adormeceu na cadeira e despencou ao chão vexaminosamente. Pensamento veloz, diz rispidamente:

– Já para o chão! Rápido!

A palavra obedece sem hesitar. Atira-se de bruços no assoalho de madeira, o coração batendo acelerado.

O detetive rasteja até a janela, ergue-se com cuidado, uma mão crispada dentro do bolso da gabardine, e olha rapidamente para fora. Parece tranqüilizar-se e olha mais demoradamente. Vira-se para a palavra que está estendida no chão e pergunta pelo canto da boca, ainda com a mão agarrando firmemente alguma coisa no bolso:

– Você viu algum grupo suspeito lá fora?

– N-não. Fora todo aquele lixo e os ratos, não havia ninguém.

– Está bem, o perigo passou. Pode levantar-se. Eles decerto desistiram. É sempre assim; podem até chegar perto, mas não se atrevem. Peço desculpas por esta situação alheia à minha vontade.

Larga o meio pacote de balas de goma que estava no bolso e ajuda a palavra a se levantar.

– Mas o que foi, quem são “eles”?

– Não pergunte, é bem melhor para você. São coisas que acontecem para quem está em certas profissões. Mas sente-se, por favor, e me diga a que veio.

– Vim procurar o senhor para descobrir minhas origens, mas eu não sabia que era tão perigoso…

– Você nem imagina. Mas enquanto eu estiver aqui você está em segurança. Pelo que eu vejo, você é Corrente.

– Sim, e não sei nada sobre o meu passado, de onde vim, para onde vou. Quero saber se o Sr. pode me ajudar.

– Remunerando bem, eu vou mais além. Vamos estudar meus honorários e, se você aceitar, posso fazer as malas e levar a efeito essa pesquisa. Em menos de um mês poderei entregar algo, se “eles” não me acertarem antes. Mas não vão conseguir nada!

Dali a meia hora, após tudo combinado, a palavra saiu. Estava impressionadíssima com a vida perigosa de um detetive etimológico. Até achou que o elevado preço que estava pagando nem era demais para uma atividade de tamanho risco.

Vendo-se sozinho, X-8 começou a trabalhar, contente com a sua presença de espírito. Remexeu nos seus livros, rabiscou no seu belo papel cor de creme com sua caneta-tinteiro Parker 51, comparou anotações. Sentou-se atrás da velha máquina de escrever, estranhamente parecida com uma locomotiva antiga, colocou no cilindro uma folha de papel de jornal de péssima qualidade e mandou ver:

CORRENTE

Esta palavra veio do Latim currere, “correr”. Esta, por sua vez, foi ligada a uma raiz pré-histórica que denotava “movimento rápido”.

Só do Latim currus, que significava “carro puxado por cavalo”, temos, entre outras:

Carroça – veículo de carga tirado por cavalos, passando pelo Italiano carrozza, do Latim medieval carrotia.

Carroçável – “o que permite a passagem de veículos”.

Carroçada – “o volume ou peso que uma carroça pode transportar”.

Carroceria – “partes situadas sobre a base de um veículo”.

Carruagem – “veículo de tração animal para transporte de pessoas”.

Carreira – “corrida”, “decurso de uma profissão”. Passou pelo Latim medieval carraria, “estrada simples para carros”.

Carrear – “transportar de carro”. Seu derivado mais recente, muito usado por políticos, é Carreata.

Carregar – “levar mercadorias”, inicialmente num carro e depois de qualquer modo.

Carga – deriva de Carregar, e tanto se aplica ao material transportado como a um ataque frontal, de Infantaria ou Cavalaria.

Carreto – “transportar algo em carro”, depois “o preço desse transporte”.

Carretel – o significado de “pequeno carro” acabou reduzido a “cilindro onde se enrola a linha”.

Carrossel – não tem nada a ver com o assunto, apesar da semelhança entre as funções e as palavras. Origina-se no século 16, de um torneio que era feito em Nápoles, chamado carusello, e que consistia em jogarem bolas de lama uns nos outros. Carusello era o diminutivo de caruso, “cabeça de criança” na linguagem local, e designava as bolas de lama. As pessoas inventam cada diversão!

Do sentido de “correr”, temos:

Correio – primeiro designava o mensageiro, depois os serviços de entrega de cartas em geral.

Corredeira – “parte rasa de um curso dágua, que desliza rapidamente”.

Corredor – “parte de uma morada por onde passam as pessoas”.

Corrente – ” o que corre”, “fluxo” de algo, como eletricidade, líquidos, lava, dinheiro (daqui a conta corrente, que tantas vezes corre mais do que queríamos).

X-8 termina a tarefa, dá umas sutis amassadas no papel, esfrega-o de leve no chão e o coloca num envelope que já viu melhores dias.

Dali a algumas semanas, disca para Corrente e marca uma data, às 20h35min.

No dia combinado e à hora precisa, a palavra entreabre a porta com muito cuidado. Quando os seus olhos distinguem a figura abaixada atrás da escrivaninha, mal aparecendo a aba de chapéu, Corrente fecha a porta atrás de si, se atira ao chão e rasteja para a frente. Encontra-se com X-8 no amplo espaço para as pernas debaixo do móvel. Pergunta:

– “Eles” estão por aí de novo?

Sempre estão – responde a voz calma e sibilante. – Trouxe o resto do pagamento?

– Aqui está, diz a palavra, entregando um pacote.

Preciso contar? – a voz parece uma navalha de gelo.

– D-de jeito nenhum, seu X-8. Eu jamais…

– Está bem. Aqui está seu envelope. Aguarde que eu vou ver se é seguro sair. – e novamente desliza até à janela e observa os arredores, de mão no bolso. Dirige-se à palavra deitada no chão:

– Pode ir agora, está tudo bem. Mas afaste-se logo desta vizinhança. Não pare até chegar em casa.

A palavra se escafede tão rápido como consegue. Chega à sua casa e entra embaixo da cama por um bom tempo. Depois de sair dali, revista cuidadosamente a casa toda, com uma colher de pau na mão. Mais tranqüila, senta para ler o papel que recebera há pouco. Fascina-se com as informações dali. Revive as emoções por que passou. Suas amigas vão ficar impressionadas.

Enquanto Corrente se apressa pelas ruas, X-8 come balas de goma e conta o dinheiro. Gostou muito da maneira de impressionar a cliente. Chega à conclusão de que seria bom usar pequenas técnicas de marketing dessas mais seguido. Pega um papel e começa a rabiscar as idéias iniciais.

Resposta:

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