Palavra mochila

Mochilinhas

Ai. Cena dantesca em minha sala de aula. Crianças aos gritos,dando socos em quem passar perto, puxando os cabelos umas das outras, escoiceando, atirando cadernos e lápis, pulando, berrando e dando risadas.

Valei-me São Benito que vou ter um faniquito. Santo Antenor, livrai-me deste horror. Santo Anspeçada, desaparecei com esta criançada. São Fernando, devolvei-me o controle deste bando.

Aqui, cri-an-ças! Vamos para de bater uns nos outros fazer uma roda aqui no chão e tentar descobrir o que foi que gerou este verdadeiro espetáculo do Circo Romano, aquele onde os lutadores se entrematavam para gáudio do público.

Hein? A Patty quis ver o que a Valzinha levava na mochila, aí esta achou ruim porque ali havia uma revistinha da tia dela que ela tinha prometido prô Joãozinho e achou que a Patty não podia saber dessas coisas e por isso a empurrou…

Bem, bem, ajeitem suas roupinhas e cabelos que a Tia Odete vai contar para vocês a origem de mochila. Esta palavrinha vem da época em que os escravos romanos, para não poderem passar por pessoas livres, tinham o cabelo raspado. Por isso eram chamados de mutilus, “mutilados”, já que tinham perdido uma parte do corpo.

Como muitas vezes eles andavam para lá e para cá levando às costas um saco de tecido com as compras do patrão, este começou a ser chamado de mutilus.

Como, Ledinha? O saco, não o patrão.

Depois de passar pelo idioma Basco, esse objeto para carregar material passou a se chamar mochila. Interessante, não?

Isso nos leva ao nome genérico de bagagem. Tal palavra nos veio do Francês bagage, de bague, “trouxa, atado, fardo”, de uma fonte escandinava que originou também a palavra bag, “saco”, em Inglês.

As bagagens costumam ser transportadas em malas, que também têm seu nome derivado do Francês – será que eles viajavam mais que os outros? – malle, “saco de couro”, do Frâncico malha, “saco para viagem”.

Sim, Aninha, maleta vem de mala, é o seu diminutivo. Menina esperta, essa! Que faro mais fino! Se se dedicasse mais ao estudo e menos à bagunça…

E, já que você falou nisso, podemos lembrar a valise, que vem do Italiano valigia. Como, em Espanhol, mala quer dizer “má”, a palavra que se firmou neste idioma para a mala de viagem foi valija, derivada do Italiano.

Um processo menos sofisticado de levar as coisas necessárias para uma viagem era colocar tudo num saco de qualquer material. Tal palavra vem do Latim saccus, do Grego sakkos, do Hebraico saq, todos com o mesmo sentido. Joãozinho, fique quieto.

Falando nisso, uma coisa que nós meninas não dispensamos ao viajar é a nossa nécessaire, uma bolsinha que os homens acham um absoluto mistério. Ali a gente leva as pinturas, os aparelhos de cuidar das unhas, os perfumes, todas essas coisas maravilhosas que os fabricantes nos dizem que vão atrair o Príncipe Encantado ao primeiro olhar ou à primeira fungada na nuca.

E, por mais que isso nunca aconteça, nós sempre acreditamos e compramos todas aquelas coisas para botar dentro. As esperanças nunca morrem!

Essa palavra francesa veio do Latim necessarius, “o que é indispensável”, literalmente “o que não tem volta”, de necesse, formado por nec, “não”, mais cedere, “recuar, ir embora”.

Também usamos uma bolsa para colocar nossas coisas dentro. Esse nomezinho veio do Latim pursa, idem, do Grego byrsa, “couro, pelego”.

Dentro dela colocamos o moedeiro, cujo nome evidentemente vem de “moeda”, e a carteira, que por incrível que pareça deriva mesmo de carta.

Não é assim, as cartas não ficavam amassadas porque no início as carteiras eram receptáculos grandes de couro que se usava para proteger a correspondência. Mais tarde elas foram encolhendo, até passarem a ser usadas para guardar dinheiro, entenderam?

Hum, o sinal do fim das atividades. Obrigada, Santa Paula, por termos chegado ao fim da aula.

Peguem as mochilinhas e não se metam mais no conteúdo das alheias.

Resposta:

A Mochila

Bati à porta de madeira escura, polida pelo passar dos anos, e ouvi a voz grave lá de dentro: – “Entre!”

Empurrei a porta e pisei no gabinete do meu avô. Lá estava ele, um velho magro, desempenado, com uma barba curta e branca, sobrancelhas espessas, sentado numa poltrona de couro marrom macio.

Aquele era o trono de onde ele reinava sobre um santuário de livros e objetos estranhos, carinhosamente guardados nas estantes que ocupavam as paredes do chão até o teto.

Meus primos tinham medo do Avô e tratavam de passar longe, pois quando a gente aprontava alguma ele nos dava tremendas broncas, usando palavras que não entendíamos mas que soavam terríveis.

A sua cara séria não me assustava, porém: eu podia ver a suavidade em seus olhos e perceber a mansidão em sua voz ao me encarar e perguntar o que é que havia.

Mostrei-lhe a mochila da escola e expliquei que havia um furo nela, e que eu tinha perdido uns lápis de cor por ali no outro dia e, já que ele sabia consertar tudo, será que ele não podia dar um jeito?…

Eu não tinha ainda idade e experiência suficientes para perceber que, mais do que tudo, eu queria era estar com ele e ouvi-lo.

Mas ele sim: sorriu, abriu uma gaveta com ferramentas estranhas, pegou uma agulha grossa e outros materiais, estendeu a mão para a mochila vazia que eu levava e começou a trabalhar.

Sentei-me numa banqueta a seus pés e prestei atenção. Antes de enfiar uma linha forte na agulha, seus olhos se perderam ao longe, como se lhe estivesse ocorrendo um pensamento inesperado:

– Perdeu os lápis pelo furo da mochila, é? E você sabe de onde veio esta palavra? E o que é que o lápis que você usa para desenhar tem que ver com lápide, a pedra que se coloca sobre os túmulos?

Respondi que não, claro.

– Pois essas duas palavras têm muito a ver uma com a outra.Em Latim, lapis queria dizer “pedra”, uma pedra feita de óxido de chumbo, que deixava um rastro escuro sobre fundo claro e que por isso era usada para escrever. Essa palavra acabou sendo usada para designar outro tipo de pedra, a que era coloocada sobre um túmulo para identificar o seu ocupante.

Começou a costurar cuidadosamente o rasgão no canto da mochila e continuou:

– Uma vez dei uns brincos de lápis-lázuli para a sua avó, e ela gostou muito. – Seu olhar se perdeu de novo. Talvez estivesse recordando uma ocasião muito especial.

Pareceu voltar de longe e virou um olho severo para mim:

Lázuli, ouviu? Com acento na primeira sílaba. Essa palavra vem do Persa lazward, que significa exatamente “azul”. Logo, lápis-lázuli quer dizer “pedra azul”. Quais foram as cores dos lápis que você perdeu?

– O vermelho e o amarelo, além de um vidro de têmpera azul.

– Hum. É difícil pensar que vermelho vem de vermis, que era o nome dado a um inseto que nós agora conhecemos por “cochonilha”, e do qual se extraía um corante, né?

E o nome da cor amarela também tem uma origem interessante. Vem do Latim amarus, “amargo”. Esse pessoal deu uma volta grande para escolher o nome da cor: como a bile, que é aquele líquido secretado pelo fígado, é amarga e como ela é de cor amarelo-dourado antes de entrar em contato com o ar e se oxidar, passando a verde, resolveram chamar a sua cor inicial de amarellus, ou “amarguinho”. Gente esquisita, aquela…

Quanto ao vidro de tinta que se perdeu, isso me lembra uma confusão surgida há séculos. Sabe a história da Cinderela?

– Mais ou menos, respondi.

– Claro: histórias de monstros, massacres e explosões eles sabem todas, mas desses clássicos é “mais ou menos”. Êta cultura atual! Mas você já ouviu falar nos famosos sapatinhos de cristal que o príncipe calçou nos pés da Cinderela?

– Dessa parte eu me lembro.

– Pois é; só que eles não eram de cristal. Receberam esse nome porque era mais chique do que “vidro”. Só que não eram nem de vidro na versão inicial da história. Eram de pele, que se diz vair em Francês, e que era um material muito fino e caro para calçados naquela época. Só que essa palavra tem uma pronúncia igual à de verre, que quer dizer “vidro” em Francês. O povo achou muito mais interessante pensar em sapatinhos de vidro e depois de cristal do que de pele. A gente é assim mesmo!

Aliás, este assunto de calçar sapatos me lembra uma pergunta muito boa do Barão de Itararé: “por que é que a gente bota as calças e calça as botas?”

Olhe só: os romanos, na época clássica, não usavam calças nem sapatos fechados. Os germanos e francos, que viviam em clima mais frio, é que os ensinaram a usar meias de pano que iam até os joelhos. Os romanos, que naquela época estavam decerto pouco criativos, as chamaram de calceum, mantendo o mesmo nome que davam aos sapatos, e que originou as nossas palavras “calçar” e “calçado”.

Estas meias chamadas calceum acabaram sendo encompridadas para cima e chegaram até à cintura, sem mudar de nome.

Lá pelas tantas, achou-se mais razoável cortar fora a parte do pé, que sujava mais do que o resto, e deixar a peça de roupa indo da cintura até os tornozelos. Aí está a origem das nossas calças.

Quanto à parte que cobria os pés, ela passou a ser chamada de “meia”, pois antes era uma parte da calça. Claro que não chegava a ser metade dela, mas vamos deixar isso para lá. O interessante é que as tais “meias-calças” que as mulheres usam agora cobrem a mesma região do corpo que o calceum de antes.

A costura estava chegando ao fim, e eu sentia pena por o rasgão não ser maior. Dava para ver que o trabalho estava saindo primoroso.

– Esses mesmos romanos costumavam fazer uma coisa para distinguir os seus criados: cortavam-lhes rente o cabelo. Devido a isso, eles eram chamados mutilus, “mutilado”. Acho que eles apreciavam muito os cabelos, a ponto de chamar de aleijado aquele que não os podia usar longos. Por isso, mutilus acabou significando “criado”. Após uma passagem pelo Basco, a palavra passou a motxil, e acabou designando o saco que muitas vezes os servos levavam às costas para carregar os objetos dos seus patrões – ou seja, a “mochila” que às vezes os netos pedem para os avôs consertarem, e que foi onde esta nossa conversa começou. Está prontinha, tome!

Puxa, e eu que não sabia que podia haver tanta História em objetos tão banais! Agradeci e fui rondar a cozinha, para ver o que a minha avó tinha disponível por ali. Uma parte da minha cabeça, porém, dava voltas atrás de uma desculpa para ouvir o velho desfiar a sua conversa de novo.

Resposta:

Origem Da Palavra